Em Mateus 5.23, Jesus estava falando de caloteiros?

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Foto: Reprodução.

Confesso que sempre achei estranho pensar que a oferta mencionada por Jesus em Mateus 5.23 fosse dinheiro. Afinal, não faria sentido que Ele orientasse alguém a deixar o dinheiro no altar, para se reconciliar com o irmão, e depois retornar para depositar no gazofilácio ou entregar ao sacerdote. Ora, se o indivíduo deixou no altar, já entregou a oferta. Por que voltar depois?

Reconheço que até pouco tempo atrás ignorava esse lado do discurso e me apegava somente ao princípio que o Filho de Deus queria ensinar, qual seja, que a nossa devoção não pode estar divorciada da vida prática. Isto é, ninguém pode ser crente na hora do culto e ímpio quando sai da igreja.

Contudo, recentemente, na Escola Bíblica Dominical, uma irmã levantou esse questionamento, sugerindo que talvez Jesus estivesse se referindo à incoerência de alguém contribuir financeiramente para a obra de Deus enquanto, deliberadamente, continua devendo dinheiro a um irmão. A base para essa compreensão seria a afirmação de que quem não observasse essas orientações corria o risco de ser levado ao tribunal e encerrado na prisão até que pagasse o último ceitil[1] (cf. Mt 5.25,26). Isso me despertou para analisar mais profundamente esse texto. O resultado será apresentado a seguir.

Contudo, antes de prosseguirmos é preciso delimitar a perícope. Ou seja, identificar onde começa e onde termina a unidade textual em que se encontra esse discurso de Jesus. À luz do contexto, parece correto afirmar que o parágrafo em que essa fala ocorre começa no versículo 21 e vai até o 26. Porquanto, em Mateus 5.20, o Mestre conclui o pensamento acerca do cumprimento da lei, destacando que nem os escribas e fariseus eram justos o suficiente para entrarem no Reino dos Céus. No versículo 21, entretanto, há uma leve mudança no assunto, haja vista que Ele começa a expor os erros associados à ideia de justiça que os escribas e fariseus ensinavam, apresentando uma interpretação mais ampla do sexto mandamento. Uma abordagem acerca da relação entre o homicídio e a conduta diária que vai até o versículo 26. Pois, a partir do versículo 27, Ele começa a falar sobre o adultério.

Nos versículos 21 e 22, o Filho de Deus ensina que a ira que conduz o indivíduo a proferir palavras amargas contra seu irmão é evidentemente pecaminosa e constitui um homicídio potencial. Isso porque, no seu coração, a pessoa já assassinou a outra. Ele salienta ainda que a manutenção desse pecado macula o relacionamento com o Senhor. Por isso, assevera que é necessário buscar reconciliação.

A relação entre os versículos 21 e 22 e os seguintes é evidenciada, no versículo 23, pelo uso da conjunção grega oûn, cujos sentidos possíveis, são: “portanto, consequentemente, então”[2]. Isso mostra que Jesus estava aplicando a uma situação prática aquilo que acabara de falar. Mas que situação era essa? Uma contribuição financeira feita por alguém que estava devendo dinheiro a um irmão? A chave para uma resposta alinhada com o texto e o contexto bíblico é o sentido da palavra traduzida como altar e a orientação de deixar a oferta para depois oferecê-la. Entendendo esses pontos poderemos chegar a uma conclusão mais adequada.

O termo traduzido em nossas Bíblias como altar é o grego thysiastérion, um vocábulo empregado na LXX[3] para traduzir o hebraico mizbeaḥ, o qual era usado para se referir ao altar em que os animais eram sacrificados a Deus (cf. Gn 8.20; Gn 12.7; Êx 20.24 etc). Por conseguinte, ao usar thysiastérion, o evangelista estava dando a entender que a fala de Jesus se referia ao culto no templo, pois na sinagoga não havia altar. E, provavelmente, ele tinha em mente o sacrifício de um animal.

Com base nisso, é possível concluir que o propósito do Mestre era sublinhar que nem mesmo a prática cúltica que era vista como a forma mais elevada de adoração (o sacrifício oferecido no templo) poderia estar em desarmonia com a conduta diária. Mais precisamente, Ele queria ensinar que ninguém pode se isolar do próximo em sua relação com Deus. Isso é enfatizado também por João, em 1João 4.20: “Se alguém diz: Eu amo a Deus, e odeia a seu irmão, é mentiroso. Pois quem não ama a seu irmão, ao qual viu, como pode amar a Deus, a quem não viu?”

É bem verdade, no entanto, que o termo traduzido como oferta, o grego dōron, pode referir-se tanto ao animal sacrificado quanto ao dinheiro lançado no “tesouro do templo” (cf. Lc 21.1)[4]. Porém, a afirmação de Jesus de que a oferta teria de ser deixada no altar enquanto a pessoa busca a reconciliação, para depois ser apresentada no mesmo altar (Mt 5.23,24), só faria sentido se o bem ofertado fosse uma vítima sacrificial. Se fosse dinheiro, bastava manter no alforje. 

Porém, como explicar o fato de que o indivíduo corria o risco de ser preso até que pagasse o último ceitil? (cf. Mt 5.26). Para elucidar essa questão, é preciso voltar ao versículo 23. Porquanto, Jesus fala da hipótese de um irmão “ter alguma coisa” contra o outro. O termo traduzido como “alguma coisa” é o grego tis, o qual significa, literalmente, “algo”. A palavra traduzida como “contra” é o grego katá, cujo significado pode ser “de acordo com”, “contra”. Em suma, Jesus está dizendo exatamente aquilo que a ACF[5] apresenta: “Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti…”. Mas o que seria essa “alguma coisa”? Ora, qualquer coisa que leve ao litígio.

Portanto, se Jesus não estava falando especificamente de dinheiro, embora dívidas financeiras possam estar incluídas nessa “alguma coisa”, o “último ceitil” não pode ser entendido sob a perspectiva financeira. Mas como entender, então? Há um princípio hermenêutico que pode nos ajudar a elucidar essa questão: a busca por textos paralelos. Isto é, basta procurar textos que possuem semelhanças com o trecho que estamos analisando, seja por empregarem as mesmas palavras e/ou expressões ou por tratarem do mesmo assunto.

Um texto que parece possuir essas características é Mateus 18.21-35. Nele, Jesus conta uma parábola sobre um homem que recebe a misericórdia de Deus, mas não mostra misericórdia para com seu próximo. Ele conclui a parábola afirmando que, indignado, o senhor daquele servo “o entregou aos atormentadores, até que pagasse tudo o que devia” (Mt 18.34). Ora, é evidente que o Filho de Deus não estava falando de uma dívida financeira, mas sim do juízo divino.

Acredito que a mesma ideia está presente em Mt 5.25,26. Ou seja, Jesus ensina que a reconciliação deve ser buscada voluntariamente, independente dos tribunais ou de qualquer imposição. Porque, quem se mantiver obstinado em relação ao seu irmão, no dia do juízo essa falha testificará contra ele. De modo que, tal como na parábola do credor incompassivo, jamais escapará da prisão. Por isso, Jesus não disse “vá e pague sua dívida”. Ao contrário, ordenou que seus discípulos buscassem rapidamente a reconciliação (cf. Mt 5.25).

Em suma, o Mestre quis sublinhar que a conduta cristã diária deve estar em consonância com a devoção manifestada no culto. Pois, nenhum discípulo deveria conseguir cultuar em paz enquanto mantém seu coração duro em relação ao seu irmão. Por essa razão, a reconciliação é urgente.

Destarte, se você está em litígio com seu irmão, deixe o que está fazendo agora, ainda que seja a participação da Ceia do Senhor ou outro compromisso na igreja, e vá se reconciliar. É inadmissível que alguém continue exercendo funções na igreja local enquanto permanece obstinado em sua decisão de não falar com seu irmão. É preciso se arrepender e obedecer ao Senhor. Porque, como disse Jesus, “Se me amardes, guardareis os meus mandamentos” (Jo 14.15).

Pr. Cremilson Meirelles


[1] O termo traduzido como ceitil é o grego kodrántēs, o qual se refere à menor moeda romana (cf. GINGRICH, Felix Wilbur. Léxico do Novo Testamento. São Paulo: Vida nova. 2005, p. 118).

[2] Vale ressaltar que essa partícula grega geralmente tem seu sentido definido pelo contexto, o qual pode indicar que se trata de um uso inferencial, uma expressão para resumir um assunto, indicar uma transição para algo novo ou uma resposta em uma réplica (cf. GINGRICH, 2005, p. 151).

[3] Versão do Antigo Testamento em língua grega, produzida no século II a.C.

[4] Cf. BROMILEY, Geoffrey W. Theological Dictionary of the New Testament. Abridged in one volume. Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans Publishing Company, 1985, p.149.

[5] Almeida Corrigida e Fiel.

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