Linhas e Entrelinhas: Uma análise das controvérsias em torno da exclusão do pastor Ed René Kivitz da OPPB-SP

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Desde que o Pastor Ed René Kivitz foi excluído da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil Seção São Paulo (OPBB-SP) houve um turbilhão de mensagens sobre o assunto. Os primeiros a falar e a dar publicidade ao ocorrido foram aqueles que se identificam com os posicionamentos do referido pastor, os quais expressaram sua indignação diante do ato que consideraram uma demonstração de autoritarismo e partidarismo político. Alguns chegaram, inclusive, a cogitar a possibilidade de que a ação fosse produto de uma mobilização fundamentalista capitaneada por bolsonaristas, visando a promoção da instituição às custas da popularidade do pastor excluído.  Essa teoria, entretanto, não pôde ser confirmada, uma vez que a OPBB-SP não deu publicidade midiática à sua decisão. Com efeito, o assunto ganhou notoriedade por meio dos defensores do pastor em questão, o qual, motivado pela agitação resultante de sua exclusão, gravou um vídeo apresentando sua versão dos fatos. Essa atitude teve uma repercussão muito maior que as reclamações de seus seguidores. Pois, a partir daí, embora muitos tenham criticado sua fala, o caso ganhou espaço na mídia secular, onde alguns demonstraram seu apoio ao pastor.

Todavia, essa situação revela problemas mais profundos. Um deles é a clara divisão doutrinária que há entre os batistas brasileiros. As redes sociais tornaram isso patente. Dois grupos, que já se digladiavam eventualmente, manifestaram suas posições em relação à postura e ao discurso do Pastor Ed René Kivitz. De um lado a ala mais conservadora, acusando-o de liberalismo teológico, do outro os evangélicos progressistas, defendendo-o e levantando bandeiras como a inclusão de homossexuais e o auxílio aos pobres. É bem verdade, no entanto, que nem todos os que saíram em defesa do pastor citado são adeptos da teologia inclusiva[1].  Mas, de um modo geral, se identificam com os pressupostos do progressismo evangélico, quais sejam: a interpretação não literal da Bíblia, o condicionamento cultural dos textos, inerrância limitada às referências doutrinárias à salvação, igualismo de gênero[2], defesa de políticas afirmativas e a visão de que a ação social é a manifestação pública mais evidente do evangelho.

A união desses pressupostos é promovida por uma hermenêutica[3]. que prioriza a cultura em detrimento da intenção original do autor bíblico. Isto é, por detrás do jargão proferido frequentemente por evangélicos progressistas, que afirma que Jesus é a chave hermenêutica das Escrituras, há o pressuposto de que a lente interpretativa mais adequada é a cultura do povo que lê o texto bíblico. É daí que surge a necessidade de atualizar a leitura da Bíblia, abandonando a literalidade, a fim de tratar de questões aparentemente não cobertas pela revelação divina. Porquanto, como asseverou o Pastor Ed René Kivitz, sem essa atualização, pecados estruturais[4]como o racismo e o machismo são legitimados e promovidos.       

Essa compreensão reflete uma metodologia pós-moderna, surgida no final da década de 1960, conhecida como reader response (resposta do leitor). Esta, conquanto possua diversas variações, em essência, se trata de uma leitura guiada por lentes ideológicas. Seus adeptos geralmente a justificam utilizando os princípios esposados pelo filósofo Hans-Georg Gadamer (1900-2002), o qual rejeitava a intenção autoral argumentando que “os textos possuem vida própria”[5]. Por conseguinte, “a intenção do autor não é decisiva e nem necessária para se estabelecer o sentido de um texto para um determinado leitor”[6]. Até porque, Gadamer defendia a ideia de que não se pode reproduzir o sentido original de um texto antigo. Sendo assim, são as pressuposições e as circunstâncias históricas dos leitores que devem determinar o sentido. A interpretação mais adequada, portanto, surge da fusão entre a situação histórica original do texto e as pressuposições do leitor, que são expandidas em função desse encontro[7].

Isso se parece bastante com a abordagem do Pastor Ed René Kivitz. É possível, inclusive, que isso esteja implícito em seu conceito de contextualização da mensagem bíblica, a qual, segundo ele, acontece através de um “processo de interpretação do texto bíblico mediado pelo contexto do leitor”[8]. Essa lente interpretativa, provavelmente, o levou à conclusão de que mudanças culturais requerem releituras do texto bíblico. Em decorrência disso, doutrinas fundamentais como os diferentes papéis estabelecidos por Deus para o homem e a mulher, desde a criação, são condenadas em seu discurso por conta de seu caráter contracultural[9]. A justificativa para essa condenação, aparentemente, está na pressuposição de que exercer a liderança no lar é o mesmo que afirmar a inferioridade do liderado. Isso porque, é dessa forma que essa relação é entendida atualmente em alguns círculos.

Evidentemente, as críticas referentes ao comportamento e, sobretudo, às ideias do pastor supracitado, não podem ser construídas com base em apenas uma de suas preleções. Pensando nisso, imagino que seja interessante considerar outra de suas respostas aos questionamentos acerca da proposta de “atualização da Bíblia”. No vídeo intitulado “Movimento Casa”, gravado no dia 29 de outubro de 2020 e postado no canal da igreja que pastoreia, o Pastor Ed René Kivitz, mais ou menos aos 40 minutos, declara que encontra “muitos irmãos homossexuais que são de Jesus, que são convertidos, que são de Deus, que são filhos e filhas amadas de Deus”[10].

Conquanto essa frase pertença a um contexto maior, sua ocorrência nos lábios de um pastor é, no mínimo, suspeita. E, como tal, deveria pelo menos gerar dúvidas. Contudo, o que surpreende grande parte dos evangélicos é o fato de que os seguidores desse pastor nem ao menos questionam. Parece que, aos olhos deles, não há nada que ele diga que provoque dúvidas a respeito de suas posturas teológicas.

Com base nesse olhar justificador, que redime qualquer indício de desvio, os adeptos desse pregador o consideram uma vítima do fundamentalismo bolsonarista batista e do oportunismo de alguns que querem se promover às custas da sua popularidade. O que, definitivamente, não faz sentido. Afinal de contas, nessa história toda quem foi “promovido” foi o pastor disciplinado, e não a instituição que o disciplinou. Aliás, vale ressaltar que a “promoção” do pastor resultou da iniciativa dele em dar uma satisfação ao seu público. Mas é perfeitamente compreensível que o seguidor apaixonado veja nisso justamente o contrário, e entenda que essa “promoção” foi o tiro que saiu pela culatra.

Não obstante, penso que uma leitura honesta de tudo o que aconteceu, deve levar à conclusão de que a exclusão do Pastor Ed René Kivitz ocorreu por causa da colisão de correntes teológicas. Pois, por mais que ele utilize a retórica e a boa oratória a fim de convencer o povo evangélico de que, nas linhas, se identifica com aquilo que os batistas e a tradição reformada sempre defenderam, nas entrelinhas suas ideias se opõem ao cerne da ortodoxia cristã. Senão vejamos: “os reformadores ensinavam que cada texto tem um só sentido, que é o literal – a não ser que o próprio contexto ou outro texto das Escrituras requeiram claramente uma interpretação figurada ou metafórica”[11]. Ora, o Pastor Ed René Kivitz, posto que diga não colocar “em discussão as convicções seculares da tradição cristã, especialmente reformada[12], deixa bem claro que a Bíblia é insuficiente “quando lida literalmente”[13]. Isso mostra que o método hermenêutico que ele utiliza não é o da Reforma Protestante.

Semelhantemente, no tocante aos batistas, ele afirma não colocar em discussão as “confissões doutrinárias batistas a respeito da Bíblia”, porém, em seu vídeo sobre o desligamento da OPBB-SP (Entre o minuto 7 e 8)[14], deu a entender que para ser batista não é preciso subscrever e nem se submeter a uma confissão de fé, mas simplesmente se alinhar com os princípios que apontam para a liberdade, pluralidade e diversidade.  Isto é, a identidade batista, na concepção dele, é definida pela inexistência de credos formais ou confissões de fé e pela aceitação incondicional de todo tipo de crenças e comportamentos como representantes da fé cristã genuína.

Essa postura, de acordo com Heber Carlos de Campos, é perigosa. “Em tempos de tanta confusão teológica por que passa a igreja cristã […] não é aconselhável professar o cristianismo sem afirmar com clareza aquilo em que se crê”[15]. Os batistas nunca fizeram isso. Sua trajetória histórica, desde o princípio, foi marcada por declarações doutrinárias e confissões de fé. Acerca dessa realidade, Edgar Young Mullins (1860-1928), no início do século XX, disse que havia “um número de excelentes credos batistas já em existência”[16]. A bem da verdade, foi justamente esse registro da fé batista que deu ao Pastor Ed René Kivitz o conhecimento dos princípios que ele alega observar. Destarte, insinuar que subscrever ou submeter-se a uma confissão de fé nada tem a ver com a identidade batista é andar na contramão da história denominacional.

Isso demonstra que as convicções do pastor supramencionado estão em flagrante contraste com aquilo que a maioria dos evangélicos crê. Se não fosse assim, por que, então, haveria tanta polêmica? Talvez, diante disso, os defensores dele digam: “as polêmicas surgem porque seu pensamento está a frente de seu tempo e muito acima do intelecto medíocre e dos preconceitos dos fundamentalistas bolsonaristas. Entretanto, há dois aspectos desse pensamento que têm de ser considerado: o primeiro diz respeito a inabilidade do pregador em comunicar claramente o que quer dizer. Porque, ao contrário do que pensam seus seguidores, se o intelecto dele é tão superior que somente as mentes privilegiadas (e arrogantes) conseguem compreender, sua pregação não alcança as massas. O pobre, sem instrução, permanece alienado. Ou seja, é um discurso ineficaz e excludente. O segundo ponto é que, curiosamente, os mesmos que acusam de ódio e reducionismo aqueles que discordam das interpretações do referido pastor, com sua ira politicamente correta, reduzem seus opositores a indivíduos opressores, desprovidos de inteligência e seguidores cegos do Presidente da República. E o pior: rotulam os discordantes de “fundamentalistas”.

Quanto a esse “xingamento”, cabe salientar que numa outra pregação polêmica do referido pastor, ele teve a audácia de comparar os fundamentalistas cristãos aos fundamentalistas islâmicos; demonstrando uma perspectiva parcial da realidade[17]. Visto que o fundamentalismo cristão nada tem a ver com o fundamentalismo islâmico. Este, diferentemente daquele, tem a violência física como um dos itens de sua agenda. O “fundamentalista cristão”, por outro lado, apenas defende os fundamentos da sua fé. E não faz isso matando pessoas ou explodindo bombas. O designativo foi usado com referência aos conservadores norte-americanos, a partir de 1920, em razão de seus embates com os adeptos do liberalismo teológico. Há quem pense que o nome tenha sido cunhado por Curtis Lee Laws, uma vez que, em 1920, ele o utilizou no jornal the baptist watchman examinerpara referir-se àqueles que lutavam pelos fundamentos da fé cristã, quais sejam: a crença na inerrância da Bíblia; o nascimento virginal e a divindade de Cristo; a morte vicária e expiatória de Jesus; a ressurreição pessoal de Cristo e a segunda vinda do Filho de Deus. Outra possibilidade de origem é apresentada por Leonardo Boff, o qual entende que “o termo foi cunhado em 1915, quando professores de teologia da Universidade de Princeton publicaram uma enorme coleção de doze livros que vinha sob o título Fundamentals. A Testemony of the Truth (1909-1915)”[18].

Outrossim, é importante frisar que, embora o termo fundamentalismo tenha se tornado pejorativo nos lábios dos progressistas, conforme a conceito de Leonardo Boff (provavelmente, o mesmo do Pastor Ed René Kivitz), a maioria esmagadora do povo evangélico poderia ser adjetivada dessa forma. Haja vista que, como diz Boff,

para o fundamentalista, a criação se realizou mesmo em sete dias. O ser humano foi feito literalmente de barro. Eva é tirada da costela física de Adão. O preceito “crescei e multiplicai-vos, enchei e subjugai a Terra, dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre tudo o que vive e se move sobre a Terra” (Gênesis 1.28) deve ser tomado estritamente ao pé da letra […] Mais ainda: só Jesus é o caminho, a verdade e a vida, o único suficiente salvador. Fora dele há somente perdição[19].  

 Seguindo esse raciocínio, é fácil concluir que fundamentalismo e conservadorismo não são sinônimos de belicosidade. Francamente, hoje em dia, o progressismo tem se mostrado muito mais belicoso e excludente. Porquanto, a militância progressista, com seu projeto de poder político e religioso, vem aparelhando as instituições com o fito de ditar a maneira como os indivíduos devem crer, agir e falar. Usando a força da lei e o poder da influência política para limitar o acesso de conservadores ao debate acadêmico, às salas de aula e aos demais espaços de formação de opinião. Quem confronta esse sistema é tachado de fundamentalista, retrógrado, intolerante, invejoso, sem relevância, desprovido de inteligência, entre outras coisas.  

Lamentavelmente, esses elementos subjaziam ao discurso do referido pastor sobre seu desligamento. Sua fala educada e sua expressão gentil veicularam “nas entrelinhas” críticas e acusações, tanto à Comissão de Ética da OPBB-SP quanto aos que consideram suas posições contrárias às Escrituras. Isso aguçou a belicosidade de seus seguidores, os quais foram à internet para acusar e diminuir os discordantes.

O mais triste nisso tudo é que os defensores desse pastor questionam a Escritura, mas consideram seu ídolo inquestionável; são capazes de rejeitar a inerrância da Bíblia, mas incapazes de atribuir erros ao seu pregador preferido; condenam falas do apóstolo Paulo, mas aceitam toda e qualquer interpretação do Pastor Ed René Kivitz, como se ele fosse o único intérprete autorizado da Palavra de Deus. Algo semelhante à infalibilidade papal. Sinceramente, isso parece idolatria.

Finalmente, acredito que para os que avidamente o defendem, ainda que ele “saia do armário” e declare publicamente sua adesão à teologia inclusiva, nada mudará. Ele continuará sendo infalível, inerrante e suficiente. Mas, para aqueles que conseguem enxergar as incoerências e equívocos de suas interpretações, recomendo: mantenham-se firmes. Não abandonem as Escrituras por causa de uma boa retórica ou da capacidade intelectiva de um pregador. Sejam crentes somente em Jesus Cristo e tenham apenas a Bíblia como única regra de fé e prática.

Que Deus nos abençoe!

Pr. Cremilson Meirelles    


[1]Construção teológica que visa legitimar biblicamente a homossexualidade.

[2]Concepção de que homens e mulheres são iguais em tudo. Inclusive nos papéis.

[3] De acordo com Grant Osborne, hermenêutica é uma palavra derivada de um vocábulo grego cujo significado é “interpretar”. Com o passar do tempo o termo passou a ser utilizado para nomear a “ciência que define os princípios ou métodos para a interpretação do significado dado por um autor específico (OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 25)

[4] “Os teólogos da libertação latino-americanos […] se referem a isso como “pecado estrutural”, ressaltando assim que o pecado é expresso e corporificado nas estruturas sociais criadas e erguidas, seja por intenção ou omissão, por seres humanos.  Muitos indivíduos adoecem em condições sociais terríveis. Outros são oprimidos politicamente, por meio de governos irresponsáveis e autocráticos. E outros se encontram desesperadamente envolvidos em dificuldades econômicas” (McGRATH apud RENDERS, Helmut. Racismo estrutural como pecado social ou estrutural: aproximações conceituais. Revista Caminhando v. 25, n. 3, p. 115-139, set./dez. 2020, p. 128. Disponível em https://doi.org/10.15603/2176-3828/caminhando.v25n3p115-139). Acesso em 07 dez. 2021.

[5] LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes. São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 218.

[6] Ibid.

[7] Cf. LOPES, 2013, p. 219.

[8] KIVITZ, Ed René. Sobre atualizar a Bíblia insuficiente. 2021, p. 13, 14.

[9] Cf.KIVITZ, Ed René. Sobre atualizar a Bíblia insuficiente. 2021, p. 1.

[10] Movimento Casa; Ed René Kivitz; 29 de outubro de 2020. (50m55s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=gfBzlL0ETwg>. Acesso em 07 dez. 2021.

[11] LOPES, 2013, p. 161.

[12] KIVITZ, 2021, p. 4 (Grifo nosso).

[13] Ibid.

[14] Sobre meu desligamento da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil/SP; Ed René Kivitz; 03 de dezembro de 2021. (17m53s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=m2ivGEMK2rE>. Acesso em 07 dez. 2021.

[15] CAMPOS, Heber Carlos de. A Relevância dos Credos e Confissões. Fides Reformata v. 2, n. 02, p. 97-128, 1997.

[16]MULLINS, Edgar Young. Crenças Baptistas. 3 ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Baptista, 1936, p. 7.

[17] Refiro-me à pregação “Jesus: o Deus promíscuo”. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=YFlZeBBxoZw>. Sobre esse vídeo, recomendo a leitura de um outro artigo que redigi, disponível em: <https://pastorcremilson.blogspot.com/2016/12/deus-promiscuo-eu-hein.html>.

[18] BOFF, Leonardo. Fundamentalismo: a globalização e o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Sextante, 2002, p. 12.

[19]BOFF, 2002, p. 14.

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