Há liberdade total, ampla e irrestrita no modo Batista de ser e pensar?

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Ao longo do tempo, os Batistas foram alinhando alguns princípios fundamentais que vieram a lhe dar sustentação histórica em que alguns nomes clássicos ficaram conhecidos, tais como “Princípios Distintivos dos Batistas”, “autonomia da Igreja local”, “competência da alma”, “livre exame das Escrituras” etc. Estes dois últimos, como já mencionamos em artigos anteriores, estão relacionados e dão colorido todo especial ao modo de ser e pensar no ambiente Batista. Mas, ao mesmo tempo, o cenário que a aplicação destes dois princípios tem proporcionado historicamente germina, digamos como efeito colateral, a diversidade ou variedade de ortodoxia e ortopraxia.

Um dia, um amigo luterano me pediu para explicar como os Batistas funcionam e constroem sua teologia. Depois de cinco minutos ele me disse, “bem, você pode parar, não estou entendendo nada!” Pois é, nem mesmo alguns Batistas entendem. Como é possível, no campo religioso, que também é um campo de forças e que geralmente se sustenta na uniformidade para germinar a sua unidade, é possível sobreviver com a unidade apesar da sua variedade ou diversidade? Gostemos ou não, é assim que, como Batistas, somos!

O primeiro Princípio Distintivo dos Batistas nos ensina que a Bíblia é a nossa única regra de fé e prática, portanto é a partir daqui que os demais princípios devem funcionar e o dilema da variedade se assenta principalmente na aplicação do princípio da “competência da alma” que, para mim, vem da herança de um dos princípios da Reforma Protestante, do Século XVI – o sacerdócio dos crentes. Na linhagem, do princípio do sacerdócio universal dos fiéis (outro modo de dizer o mesmo) temos o princípio da “competência da alma” que vai mais além, pois aponta para a competência que cada crente tem em se aproximar diretamente das Sagradas Letras e exercer o seu livre exame, como manifestação da liberdade de consciência.

E o percurso não para aqui, mas prossegue para outro componente que é a liberdade de consciência e de expressão, isto é, o crente tem liberdade, sem intermediários (sacerdócio, de certo modo) de ler a Bíblia, interpretá-la e, após isso, encontrar suas conclusões, depois terá a liberdade de expor essas conclusões.

Aqui é que os efeitos colaterais podem se fazer presentes e, em um extremo, gerar até anarquia, em vez de variedade respeitosa, dialogal e aprendente que apontaria para o fortalecimento de nossa unidade como povo batista.

Em linguagem simples, um gigantesco imbróglio que tem causado muito desconforto, pois naturalmente essa “linhagem” de percurso pode nos levar a divisões, segregações, marginalizações e até mesmo a radicalismos, especialmente com indicações tais como, “minha abordagem é que é bíblica”, “isso é liberalismo” ou algo semelhante. Por favor, aos mais radicais, não me chamem de liberal, porque posso pensar diferente, aliás não sou de ficar colocando etiquetas em pessoas ou grupos, os que se autodenominam já o fazem.

Como resolver esse impasse? Já que o teólogo é da Igreja, deve trabalhar para a Igreja, dar suporte à Igreja e esta é que é autônoma (outro Princípio Distintivo dos Batistas). Então, se a autonomia é da Igreja local e não do teólogo, não existe liberdade ampla total e irrestrita no fazer teológico no modo Batista de ser e pensar. Em palavra mais simples, na produção teológica Batista não há como termos “franco-atiradores” independentes da vida da Igreja.

Lamentavelmente o triunfo do indivíduo, um dos principais componentes da Hipermodernidade, tem tornado o indivíduo seu próprio legislador e juiz, que, associado ao princípio da autonomia da Igreja local, tem sido absorvido por indivíduos (pastores, teólogos, membros de Igrejas etc.) como se pudessem também ser autônomos. Vivemos em uma comunidade, nosso papel deve ser desejar a manutenção da unidade do Espírito promovida pela paz (Efésios 4.3). Na visão sistêmica seria como promover a homeostase. E o apóstolo Paulo ainda nos ensina que Deus não é Deus de confusão, mas de paz (1 Co 14.33).

É claro que alguém poderia perguntar, “mas não tenho o direito do livre exame das Escrituras?” Com certeza, nenhum Batista pode negar e proibir alguém de examinar as Escrituras, interpretá-la, pois isso é fruto da “competência da alma”. Mas aqui é que reside um segredinho fundamental que podemos aprender com o mesmo ensino que o apóstolo dos gentios aplica aos profetas, que deveriam gerenciar seu papel (I Coríntios 14.32). Talvez, algum colega possa me questionar dizendo que o texto esteja falando de profetas. Mas, pense comigo, qual é o princípio e essência do ensino que está por trás do texto?

Assim, como teólogo, posso e devo me aproximar das Escrituras com todo ferramental interpretativo e exegético e interpretá-la. Depois disso, dialogar com a Igreja sobre minhas conclusões, seja por meio do púlpito, seja pela escrita, seja pelo ensino, abrindo espaço para que minhas conclusões sejam avaliadas, objeto de discussão, de análise hermenêutica e exegética. Enfim, estes princípios da “competência da alma”, liberdade e livre exame das Escrituras, liberdade de consciência/ expressão, ainda que com foco individual, jamais devem ser entendidos de maneira individualista.

Em resumo, a Bíblia é como um vetor catalizador de nosso diálogo comunitário e aprendente na construção de nossa compreensão teológica. A comunidade é o ambiente onde esse diálogo deve ocorrer. O teólogo Batista existe para dar à Igreja segurança da compreensão da eterna Palavra de Deus e buscar meios para a sua contextualização, isto é, partindo da busca dos profundos princípios bíblicos, imutáveis, eternos, perenes, e aplicá-los no contexto em que vivemos hoje, encontrando, assim, respostas bíblicas para situações concretas de hoje. E, após tudo isso, estar sujeito à Igreja local para ser avaliado em suas conclusões, pois poderá ter deixado de lado alguma compreensão ou algum componente de análise exegética ao buscar sua compreensão das Escrituras. A comunidade, então, poderá lhe dar suporte e prover agradável espírito de paz e unidade, dentro de um ambiente aprendente, dialogal, de comunhão, unidade permeada pela paz.

Como Batistas enfatizamos a comunidade local, então como fica a visão institucional ou convencional?

Igrejas Batistas decidem se unir para cooperar umas com as outras. Por isso, a missão da Convenção Batista Brasileira é “viabilizar a cooperação entre as Igrejas Batistas no cumprimento de sua missão como comunidade local”. Ao se unirem, as Igrejas também se dedicam a discutir princípios, práticas, doutrinas e seu modo de convivência e lealdade, sem isso, nenhum grupo ou comunidade consegue sobreviver e vira anarquia.

Isso nos leva ao próximo passo: que o teólogo vá mais além de sua Igreja local e apresente suas conclusões às comunidades Batistas por meio das estruturas que elas mesmas precisam criar. Em resumo, vejamos algumas conclusões práticas:

Já que defendemos o livre exame das Escrituras, nossas Igrejas locais precisam urgentemente fornecer aos seus membros ferramentas e experiência para o labor interpretativo das Escrituras. Como não temos um clero, pelo menos não deveríamos ter, o crente tem o direito de se aproximar das Escrituras, mas também receber orientação em como fazer isso em um ambiente aprendente, dialogal, de comunhão, amor e paz;

A estrutura convencional necessita aperfeiçoar sistemas para que teólogos, pastores, líderes e todos os crentes possam ter a oportunidade de expor suas conclusões obtidas pelo livre exame das Escrituras e receberem o devido suporte sobre isso. Vamos concluir lembrando que, hoje em dia, a “verdade” deixou de ser coincidente com a realidade e passou a ser definida pela conveniência de pessoas, também pela quantidade de acessos e “likes” que recebe nas redes digitais.

Além do mais, precisamos compreender que a liberdade foi sofrendo alterações, pois em seu percurso histórico envolvia o desenvolvimento de virtudes para governarmos a nós mesmos e gerirmos nossos apetites e um tipo de tipo de educação que deveria modelar e guiar um povo. Mas, no mundo contemporâneo, a liberdade foi ressignificada e leva a pessoa a ser livre para fazer o que quiser, independentemente do ambiente em que vive e quem pensa diferente ou é preconceituoso, não bíblico ou mesmo liberal nesse caso.

Então, o exercício da liberdade exige conhecimento, responsabilidade coletiva, e, nesse sentido, não existe liberdade ampla total e irrestrita, pois estamos juntos e unidos no mesmo ideal em que o exercício da liberdade será nesse ambiente “orgânico” do corpo de Cristo em que se uma parte do corpo sofre todo o corpo sofre (I Coríntios 12.26). Células que reagem contra o corpo são cancerígenas, destrutivas.

Vamos lembrar, o terreno doutrinário é um de muitos que caracterizam nosso Cristianismo, mas não o único. Não podemos deixar que a diversidade ou variedade doutrinária, natural do modo de ser e pensar como Batistas, destrua nossa unidade. Há outros pontos que podem nos unir.

Precisamos crescer na propagação do Evangelho, mas igualmente crescer no diálogo, a comunhão, a amizade entre nós, que fomos salvos pelo mesmo Jesus, que deu sua vida por nós.

Por Lourenço Stelio Rega – CBB.

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