Decerto, uma das convicções mais fortes da maior parte dos crentes, algo que a maioria concorda, é que Caim, o primeiro filho de Adão e Eva, foi condenado pelo fratricídio que cometera e, por isso, está ardendo no fogo do inferno. Muitos, inclusive, seguindo esse raciocínio, esposam a ideia de que a descendência do primeiro homicida foi tão maligna quanto seu patriarca. A família de Sete, outro filho do primeiro casal, por outro lado, teria sido composta de santos homens e mulheres que buscavam a Deus incessantemente.
Essa argumentação é usada para apontar a identidade dos filhos de Deus e das filhas dos homens, mencionadas em Gênesis 6.2. Os primeiros seriam os filhos de Sete, enquanto as mulheres seriam as filhas de Caim. Conquanto essa teoria seja bastante aceita, penso que as bases que a sustentam não são nem um pouco sólidas. Na verdade, ela parece basear-se numa espécie de “maldição hereditária” que acometeu a prole de Caim e uma “bênção hereditária” derramada sobre a descendência de Sete. Ora, não precisa nem buscar referências bíblicas para concluirmos que isso é balela. Quantas vezes já vimos ovelhas negras virem de famílias de homens de Deus ou pessoas de bem oriundas de famílias terríveis? Isso acontece o tempo todo! Davi, por exemplo, era homem de Deus, mas um de seus filhos estuprou a irmã (2Sm 13.1-14), o outro matou o irmão (2Sm 13.23-29) e tentou tomar o trono do pai (2Sm 15). De igual modo, os filhos do profeta Samuel, embora o pai tenha sido um excelente exemplo, foram corruptos (1Sm 8.1-3). Houve também pais de má índole que geraram bons filhos. Um exemplo disso é o rei Ezequias, filho de Acaz. Ainda que seu pai tivesse sido um dos piores reis de Israel (2Rs 16.1-4), ele, porém, foi um dos melhores (2Rs 18.1-6). Não existe esse negócio de “maldição hereditária”, nem “bênção hereditária”! Basta ler o capítulo 18 do livro de Ezequiel. “[…] a alma que pecar, essa morrerá” (Ez 18.4).
Voltemos então ao ponto de partida de nossa argumentação: o primeiro homicídio. O episódio narrado em Gn 4 não tem como propósito crucificar Caim e sua descendência, mas sublinhar o crescimento do pecado, retratado agora por meio da animosidade entre seres humanos. No texto, ambos, Caim e Abel, entregam oferendas ao Senhor. Caim, tal como seu pai, tornou-se agricultor (lavrador da terra – Gn 4.2). Por conta disso, naturalmente, sua oferta seria o produto do seu trabalho, ou seja, o fruto da terra. Abel, por outro lado, por ser pastor de ovelhas, ofereceu ao Senhor um de seus animais. No entanto, sem explicação alguma, Deus rejeita a oferta de Caim e aceita o sacrifício de Abel. É claro que Deus, contemplando o interior de ambos (1Sm 16.7), agradou-se do coração de Abel. A reação de Caim comprova isso (Gn 4.5). Assim, movido pela ira, Caim, que fora advertido por Deus (Gn 4.6,7), golpeia seu irmão e tira sua vida. Antes de prosseguirmos, cabe-nos indagar: será que Caim tinha ideia de que o golpe desferido contra o irmão resultaria em sua morte? Até porque, seguindo a lógica da narrativa, ninguém havia morrido ainda. Como ele poderia saber que Abel morreria? É claro que isso de maneira alguma pode absolvê-lo, mas certamente leva-nos à reflexão.
Mais à frente, após o homicídio, Deus interpela Caim sobre o paradeiro de seu irmão. Sua resposta é, no mínimo, irreverente, pois assevera que não é “o guardador de seu irmão” (Gn 4.9). Mesmo assim, Deus, o perdoador por excelência, o mesmo que havia manifestado misericórdia para com Adão e Eva quando estes lhe desobedeceram, procura conscientizá-lo da gravidade de seu ato: “Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra” (Gn 4.10). O Senhor lhe mostra que seu erro teria consequências danosas: “E agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para receber da tua mão o sangue do teu irmão. Quando lavrares a terra, não te dará mais a sua força; fugitivo e vagabundo serás na terra” (Gn 4.11,12). A declaração divina faz com que o assassino reflita sobre seu crime. Ele diz: “É maior a minha maldade que a que possa ser perdoada” (Gn 4.13). Ele reconhece sua atitude como errada (maldade) e que, por isso, não merece perdão. É como se ele, concordando com o dito do Senhor, dissesse: É… realmente eu errei! Não mereço ser perdoado! Sem dúvida, isso evidencia algo que nós conhecemos como arrependimento.
Infelizmente, por causa de algumas traduções tendenciosas, essa conclusão nem sempre é tão fácil. Há versões que dão a entender que Caim estava com medo do castigo que viria sobre ele. “Caim disse a Deus, o Senhor: -Eu não posso aguentar esse castigo tão pesado” (Nova Tradução na Linguagem de Hoje). Todavia, isso pode ser facilmente solucionado quando analisamos o texto em seu idioma original. Porquanto, no hebraico, a palavra traduzida como “maldade” é ‘awôni, cuja raiz é ‘awôn, que, conforme Gerhard Von Rad (2006, p. 257), significa “delito, pecado, incluindo sempre uma consciência da culpabilidade”. O autor em questão ainda ressalta que “‘awôn tem a sua raiz na mentalidade malvada” (loc. cit). Isto é, Caim reconhece sua culpa, entende que o que fez foi algo muito ruim. Isto é confirmado pela Septuaginta, versão grega do Antigo Testamento, a qual traduz ‘awôni utilizando o grego ̛aitia. Acerca desse termo, COENEN e BROWN (2000, p.489), afirmam: “usualmente, a palavra carrega o sentido de ‘acusação formal’, ‘culpa’, indicando a responsabilidade e a culpa que acompanham um ato”. Em outro texto (Lv 26.39), entretanto, a Septuaginta traduz ‘awôni como hamartía, palavra grega que significa pecado. Decerto, Caim assumiu a culpa e a responsabilidade pelo ocorrido, reconhecendo que sua atitude constituía um pecado diante de Deus. Isso fica evidente no versículo 14, no qual Caim assume as consequências de seu ato: “Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua face me esconderei; e serei fugitivo e vagabundo na terra, e será que todo aquele que me achar, me matará”.
Ademais, a palavra hebraica traduzida, na versão revista e corrigida, como “perdoada” (Gn 4.13), é o termo hebraico minᵉśô’, cuja raiz é o verbo nāśā’, o qual aponta para as seguintes possibilidades: “Levantar, erguer, carregar, suportar; levar, levar embora, tomar; conter” (KIRST et al., p. 161). Em diversos textos (Êx 34.7; Nm 14.18; Mq 7.18), nāśā’ significa “o levar embora, o perdoar o pecado, a iniquidade e transgressão” (HARRIS, ARCHER e WALTKE, 1998, p. 1004). Em Gn 4.13, o verbo é usado no modo Nifal, grau simples da voz passiva, com referência ao substantivo ‘awôni. Isto é, a ideia é de que a iniquidade de Caim era tão grande que não poderia ser levada embora. Diante disso, pode-se depreender que Caim está dizendo que, dada a dimensão do seu pecado, Deus não poderia levá-lo embora, ou melhor, removê-lo. Tal declaração, na verdade, constitui uma impossibilidade teológica. Até porque, não existe pecado que Deus não possa perdoar.
É exatamente nesse momento de reconhecimento do erro, de contrição, que a misericórdia divina é manifestada. Pois, depois que o assassino reconhece o seu pecado, a Bíblia deixa transparecer o perdão de Deus, O qual, sem nenhuma explicação (tal como fizera aceitando o sacrifício de um e rejeitando o do outro), dá a Caim um sinal de graça, protegendo-o de todo o mal (Gn 4.15). Por mais que nós não consigamos perdoar Caim, Deus era plenamente capaz de perdoar um criminoso arrependido. Ele o fez com Moisés, que também cometeu homicídio (Êx 2.11,12) e com Davi (2Sm 11).
O perdão concedido a Caim fica patente quando analisamos o nome que ele dá a seu filho (Gn 4.17). De acordo com LASOR (1999, p. 20), o nome “Enoque está associado à dedicação, consagração”. Ora, normalmente, na Bíblia, os nomes dados às pessoas e aos locais, estão relacionados a algo que aconteceu. Obviamente, Caim havia iniciado[1] uma nova fase em seu relacionamento com Deus. Ele estava dedicando seu filho e sua vida a Deus. Até porque, o mesmo nome dado ao filho é dado à cidade edificada por ele (Gn 4.17). Por sentir-se perdoado, Caim dedica sua vida e família ao Senhor. Além disso, ao contrário do que dizem alguns, a Bíblia mostra a prosperidade da geração de Caim, e não sua decadência. Os primeiros músicos vieram de sua família (Gn 4.21), assim como os primeiros artífices (Gn 4.22), os primeiros fazedores de tendas (Gn 4.20) e, além do mais, Caim foi o primeiro urbanista (Gn 4.17). A genealogia em questão só apresenta um exemplo negativo: Lameque (Gn 4.19,23,24).
Quanto ao fato de Caim ter se retirado da presença do Senhor, vale salientar que, embora tivesse sido perdoado por Deus, Caim teria que arcar com seus erros, assim como Adão e Eva. Por isso, o Senhor o expulsou da terra fértil cultivada. Desse modo, retirou-se da presença de Javé. Isto, não significa, entretanto, que ele não adorou mais a Deus, mas trata-se de um dos muitos antropomorfismos característicos dos primeiros capítulos de Gênesis. O mesmo ocorre em Gn 3.8, quando o texto diz que Deus passeava no jardim, atribuindo forma humana ao Senhor. De igual modo, em Gn 2.7, a Bíblia mostra Deus assoprando nas narinas do homem e moldando-o como um escultor. Isto é, aspectos humanos atribuídos ao criador, que é espírito (Jo 4.24). Destarte, quando o texto diz que Caim saiu de diante da face do Senhor (Gn 4.16), a ideia é que ele deixou aquele lugar e foi peregrinar, porquanto Deus dissera que ele seria nād (peregrino).
No que tange à genealogia de Sete, é necessário frisar que, conquanto Noé e Enoque se destaquem, não há razão para santificar toda a sua descendência, elevando-os ao patamar de “filhos de Deus”. Até porque, a tragédia que se tornou o homem tem mais a ver com a geração de Sete do que com a de Caim, pois Gn 6 dá sequência à genealogia do capítulo 5, que apresenta os filhos de Sete. Ademais, todos morreram no Dilúvio, inclusive os descendentes de Sete.
Visto isso, acredito que o capítulo 6 de Gênesis trate da corrupção da humanidade, dando continuidade ao crescimento do pecado, desde o Éden. Não podemos apedrejar Caim, pois todos somos pecadores. É claro que, em dado momento de sua vida, tal como ocorreu conosco, Caim foi do maligno (1Jo 3.12). No entanto, Deus foi ao seu encontro, dando-lhe a oportunidade de refletir acerca de seu pecado e arrepender-se, sendo, então, alcançado pela graça divina.
Definitivamente, à luz do que foi apresentado, não há razão para estigmatizar a descendência de Caim, quando, na verdade, toda a humanidade pecou em Adão. O fatricídio de Gênesis 4 é apenas uma evidência da natureza caída que compartilhamos. O próprio Jesus declarou que “do coração procedem os maus pensamentos, mortes, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos e blasfêmias” (Mt 15.19). O mal está em todos, e não só nos filhos de Caim. Mas, mesmo assim, a graça divina nos alcançou. Por que não poderia alcançar o primogênito de Adão? Reflita nisso. Deus o abençoe!
Pr. Cremilson Meirelles
Colaborador deste Portal
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COENEN, Lothar; BROWN, Colin. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. Trad. Gordon Chown. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2000. 1 v. 1360 p.
HARRIS, R. Laird; ARCHER, Gleason L.; WALTKE, Bruce K. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998. 1789 p.
KIRST, Nelson, et al. Dicionário Hebraico-Português e Aramaico-Português. 18 ed. São Leopoldo: Sinodal, 2004. 305 p.
LASOR, William S; HUBBARD, David A; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999. 860 p.
RAD, Gerhard Von. Teologia do Antigo Testamento. 2 ed. São Paulo: Aste/Targumim, 2006. 901 p.
[1] Outra tradução possível para o termo ḥănôkh.