“Por que a minha linguagem não é clara para vocês? Porque são incapazes de ouvir o que eu digo.” (João 8.43)
Estas são palavras de Jesus. Ele está em diálogo com os líderes judeus. Eram homens religiosos, conhecedores das Escrituras. Mas ficavam confusos ao ouvirem Jesus. As palavras de Jesus não faziam sentido algum para eles. Pior: soavam como blasfêmias. Há pessoas que veem blasfêmia em tudo que não se assemelhe às próprias convicções. São pessoas que, nas palavras de Jesus, não conseguem entender a sua linguagem, sendo incapazes de ouvi-lo.
A leitura dos Evangelhos revela que aqueles homens eram cheios de si mesmos. Suas certezas sobre Deus e o sagrado faziam deles pessoas prontas para julgar e categorizar a vida e o próximo. Eles não tinham dúvidas. Abstraiam-se muito facilmente do fato de que eram pecadores, limitados e sujeitos a enganos. Acreditavam-se possuidores de visão, compreensão e verdades irretocáveis. Para eles Jesus era um tipo a quem faltava critérios. Humano demais, comum demais para ser o Messias. Devia ser mais distinto, separado e exclusivo. Como poderia alguém como Ele, que nem era como eles, declarar-se Filho de Deus?!
Para aqueles líderes Jesus era condescendente demais, aceitando misturar-se com as multidões, em lugar de estar nas rodas restritas da confraria religiosa. Ele se fazia amigo de pessoas que eles resistiam até em receber no templo. Mulheres de moral duvidosa o seguiam e algumas até o tocavam. Chegou a travar diálogo com uma samaritana em lugar público e havia convidado um cobrador de impostos para ser seu discípulo. E cometia o absurdo de formular histórias em que samaritanos e publicanos eram heróis e sacerdotes e levitas, vilões. Ouviram de Jesus que coavam mosquitos e engoliam camelos e que eram como sepulcros caiados e guias cegos.
Já as multidões ficavam maravilhadas com as palavras de Jesus. Os guardas que foram enviados para o prender voltaram de mãos vazias e disseram: “Não pudemos prendê-lo! O que ele disse nos roubou toda coragem e autoridade. Na verdade, jamais ouvimos alguém falar como ele!”. Eram mesmo gente ignorante sobre Deus! Será que não percebiam que os líderes não se deixavam enganar por aquele Nazareno?! Alguns dos líderes até se arriscaram em aproximar-se do Mestre, mas ouvi-lo implicaria em muitas mudanças. E quem queria alguma mudança? Jesus não facilitava as coisas! A melhor opção então era afastar-se e tratar de cortar-lhe as asas. E assim se fizeram seus inimigos.
O que nossos anos de vida religiosa tem feito com nossos ouvidos espirituais? Somos capazes de ouvir e de compreender as palavras de Jesus? Em que elas tem nos mudado? Quem somos por causa delas? Se as ouvimos de verdade, o quanto temos crescido em humildade, misericórdia e amor? Se persiste em nós a coragem de apontar o dedo e julgar, onde está a humildade de quem se vê pecador e sabe que nada merece de Deus? Se ignoramos a dor e necessidade do próximo, se não sofremos com o fracasso e a culpa do nosso irmão, onde está a misericórdia de quem sabe que somente está de pé, por misericórdia. Será que ainda não entendemos que, quando caímos, e não há quem não caia, é a misericórdia e não a justiça que nos socorre?
Se acreditamos que estamos em dia com o amor, que agora o que precisamos mesmo é de regras, pois já temos amor demais em nossas mãos e nossa consciência, não seria isso sinal de nossa ignorância espiritual? Onde esperamos chegar? Estamos realmente sendo capazes de ouvir as palavras de Jesus?
Não devemos ter pressa em nos distanciar dos religiosos do Evangelho. Devemos apressadamente avaliar nossos caminhos. Precisamos ouvir nossas próprias palavras e pensamentos. Assistir às nossas próprias atitudes e ações. Faz mais bem a desconfiança de que podemos nos desviar enquanto estamos no caminho, do que a certeza de que seguimos reto, quanto já nos perdemos do Mestre. Que, arrependidos e quebrantados, empobrecidos e necessitados, indignados conosco mesmos e apiedados de nosso irmão, sejamos capazes de ouvir as palavras de Jesus. Pois é somente assim que elas podem ser ouvidas. E de nenhum outro jeito!
Pr. Usiel Carneiro