Introdução
Em Atos 1 relata-se que os apóstolos, entendendo que o lugar de Judas tinha de ser ocupado, elegeram Matias e o consagraram ao apostolado (At 1.21-26). Isso ocorreu por iniciativa de Pedro, o qual além de afirmar que era “necessário” efetuar tal escolha, destacou os requisitos para efetivá-la, quais sejam: ter convivido com Jesus e os apóstolos em todo o tempo, desde o batismo de João até a ascensão do Senhor aos céus (At 1.21,22). Esse indivíduo, junto com os outros apóstolos, daria testemunho acerca da ressurreição de Cristo (At 1.22).
Todavia, por mais que os apóstolos tenham orado antes (cf. At 1.12-14) e durante o processo de escolha (cf. At 1.24,25), a fim de que a vontade de Deus fosse feita, há quem pense que a consagração de Matias foi ilegítima. Conheço homens de Deus que, com convicção, sustentam essa tese. Será que eles têm razão?
Seu argumento principal é que, para ser apóstolo, era preciso que o indivíduo fosse escolhido diretamente por Jesus. Uma exigência que, de acordo com eles, Matias não cumpre. Eles acrescentam ainda que a afirmação de Apocalipse 21.14 de que o muro da Nova Jerusalém tem “doze fundamentos e, neles, os nomes dos doze apóstolos do Cordeiro”, inviabiliza a existência de treze apóstolos. Por conta disso, concluem que só houve um apóstolo consagrado depois da morte de Judas: Paulo de Tarso.
Conquanto esse pensamento pareça fazer sentido, ele esbarra em, pelo menos, dois problemas. O primeiro é que seus adeptos revogam algo que a Bíblia não revogou. Porque, além de Atos 1.21-26 deixar claro que Matias foi consagrado ao apostolado, não há um texto sequer que afirme que essa consagração não foi válida. O segundo problema tem a ver com as declarações de Atos 2.14; 6.2 e 1Coríntios 15.3-8, as quais confirmam a existência de doze apóstolos antes do chamado de Paulo.
Visto isso, nas linhas abaixo, procuraremos expor as fragilidades dessa tese a partir de respostas bíblicas aos problemas supracitados. Porém, é necessário salientar que não pretendemos desqualificar os proponentes desse pensamento como exegetas ou mesmo diminuí-los como homens de Deus. Com efeito, nosso objetivo é apenas expor aquilo que acreditamos que a Bíblia diz.
1. O relato da consagração de Matias contém evidências da ilegitimidade de seu apostolado?
Em relação ao primeiro problema, é importante frisar que sua enunciação não se trata de um argumento a partir do silêncio[1], mas sim de uma referência a algo que a Bíblia afirmou, mas não revogou. Com base nisso, entendemos que para defender a ilegitimidade do apostolado de Matias, é necessário provar que essa revogação ocorreu ou que a consagração dele nunca foi aprovada. Do contrário, as bases dessa tese serão meras pressuposições.
Diante dessa contestação, os que esposam essa posição se engajam na tarefa de desqualificar cada um dos elementos presentes na consagração de Matias. O primeiro alvo desse esforço é a liderança apostólica. Pois, consoante a referida tese, o fato de esse evento ter ocorrido antes do derramamento do Espírito Santo comprova que os apóstolos não estavam sendo dirigidos pelo Senhor. Uma evidência disso, conforme argumentam, seria o modus operandi. Porquanto, o texto diz que eles escolheram Matias mediante o lançamento de sortes (cf. At 1.26). Algo que nunca mais ocorreu após a descida do Espírito Santo.
Não obstante, cumpre salientar que, desde o Antigo Testamento, a prática de “lançar sortes” era observada com o propósito de conhecer a vontade divina. Isto é, não era uma espécie de aposta, como se costuma pensar. Na verdade, era um expediente através do qual Deus comunicava suas decisões.
Esse procedimento era aprovado pelo Todo-Poderoso. Tanto, que Ele ordenou que a terra prometida fosse dividida por meio do lançamento de sortes: “Todavia, a terra se repartirá por sortes; segundo os nomes das tribos de seus pais, a herdarão” (Nm 26.55). Outrossim, Ele permitiu que ofícios e funções no templo fossem definidos por meio desse método (cf. 1Cr 24.5,31).
Ademais, vale sublinhar que, antes de lançarem sortes, os apóstolos oraram rogando ao Senhor que revelasse qual dos candidatos havia escolhido para compor o colégio apostólico (Atos 1.24). Ou seja, eles acreditavam que Deus já tomara sua decisão; o ato de “lançar sortes” apenas a tornaria conhecida. Pois, como diz Provérbios 16.33, “a sorte se lança no regaço, mas do SENHOR procede toda decisão” (Pv 16.33).
Em suma, como afirma Lopes, “a escolha de Matias através de sortes preenchia o requisito de ter sido chamado diretamente pelo Senhor”[2]. Isso não significa que esse método seja normativo. Até porque, essa foi a última vez que esse expediente foi usado para se conhecer a vontade de Deus. Se fosse uma norma para a igreja teria sido utilizado novamente.
Em adição, é preciso lembrar que Jesus só subiu aos céus “depois de ter dado mandamentos, pelo Espírito Santo, aos apóstolos que escolhera” (At 1.1,2). Ora, não seria razoável concluir que a consagração de um décimo-segundo apóstolo estava entre esses mandamentos? É bem verdade, no entanto, que nenhum deles disse que foi Jesus quem ordenou tal procedimento.
Contudo, em sua segunda carta, o mesmo Pedro que orientou o grupo a agir daquela maneira (cf. At 1.15-22), asseverou que o mandamento do Senhor e Salvador veio por intermédio dos seus apóstolos (2Pe 3.2). Isto é, eles eram porta-vozes de Cristo; representantes autorizados do Filho de Deus. Por isso, a igreja servia Jesus perseverando na doutrina apostólica (At 2.42).
Os apóstolos, portanto, estavam investidos de autoridade. O discurso de Pedro parece refletir isso. Ele fala com convicção, usando palavras que denotam imprescindibilidade, a fim de indicar aquilo que Deus predissera que aconteceria. Ele emprega, por exemplo, o grego deî (termo que aponta para algo que “é necessário”[3]), nos versículos 16 e 21, dando a entender que a traição de Judas, bem como sua substituição tinham de acontecer.
É digno de nota que esse termo grego, tanto na LXX (Septuaginta) quanto no N.T. (Novo Testamento), sobretudo nos escritos de Lucas (o Evangelho de Lucas e o livro de Atos), está relacionado com a vontade de Deus e não com algo como o destino[4]. A partir daí, subentende-se que, pelo menos na concepção de Pedro, a consagração de um décimo-segundo apóstolo estava alinhada com a vontade divina.
Mas onde estava a base para essa conclusão? De acordo com a narrativa, a fundamentação do discurso de Pedro estava nas Escrituras. Tanto, que ele se remete a três salmos para embasar suas asserções. Em primeiro lugar, referindo-se provavelmente ao salmo 41.9, ele diz: “convinha que se cumprisse a Escritura que o Espírito Santo predisse pela boca de Davi, acerca de Judas, que foi o guia daqueles que prenderam a Jesus” (At 1.16). Em seguida, ele cita os Salmos 69.25 e 109.8: “porque no livro dos Salmos está escrito: fique deserta a sua habitação, e não haja quem nela habite, tome outro o seu bispado” (At 1.20).
Perceba que cada passo em Atos 1.15-26 estava ancorado no Antigo Testamento. Mas de onde veio a compreensão de que era possível aplicar esses textos àquela situação, já que o Espírito Santo não havia sido derramado? Bem, de acordo com Lucas, antes de ascender aos céus, Jesus ensinou aos apóstolos que tudo o que convinha que se cumprisse acerca dele “estava escrito na lei de Moisés, e nos profetas e nos Salmos” (Lc 24.44).
Curiosamente, o evangelista utilizou o grego deî (traduzido na ACF como “convinha”) para transmitir a ideia que Jesus quis comunicar em aramaico. Ou seja, conforme o relato, tal como Pedro, Jesus cria que era “necessário” que algumas coisas acontecessem justamente porque estavam registradas nas Escrituras. Isso indica que a fala de Pedro, na realidade, era produto dos ensinamentos de Cristo.
O evangelista ainda acrescenta que o Filho de Deus abriu o entendimento dos apóstolos para que compreendessem o texto bíblico (Lc 24.45). Foi daí que veio a conclusão de Pedro. Afinal, Jesus ficou com eles “por espaço de quarenta dias, falando das coisas concernentes ao reino de Deus” (At 1.3). Logo, certamente foi Ele quem lhes ensinou essas coisas.
Sinceramente, se não fosse assim, seria no mínimo estranho que o mesmo Espírito Santo, que matou um casal por mentir para Deus (At 5.1-11), tivesse permitido que um erro desses persistisse na igreja sem que houvesse alguma palavra contrária. Por que não inspirou Lucas para que fizesse uma observação, tal como o discípulo amado fez a respeito de Judas em João 12.6[5]? Aliás, por que não há, em nenhuma parte do N.T., um comentário sequer sobre a ilegitimidade do apostolado de Matias? Esses questionamentos têm de ser levados em conta ao tratar desse assunto.
Outro ponto que causa estranheza é o fato de que os pais da igreja nunca viram Matias como um apóstolo ilegítimo. Ao invés disso, vários deles reconheceram seu apostolado. Irineu de Lyon (130-202 d.C.), por exemplo, menciona que Matias foi consagrado para ocupar o lugar de Judas[6]. Semelhantemente, João Crisóstomo (347-407 d.C), comentando 1 Timóteo 1.19, explica que os apóstolos, conscientes de que o Espírito Santo ainda não fora dado, submeteram a escolha de Matias a Deus por meio da oração[7].
Eusébio de Cesareia (265-339 d.C.), o autor da História Eclesiástica, obra que relata a história da igreja desde o livro de Atos dos Apóstolos, segue a mesma linha em relação à consagração de Matias. Ele menciona, inclusive, que além de ter se tornado apóstolo em substituição a Judas, Matias também fez parte dos setenta discípulos que Jesus comissionou em Lucas 10[8].
Em face do exposto, fica patente que a tese da consagração ilegítima se apoia em um terreno arenoso. Suas premissas carecem de fundamentação bíblica e histórica. Suas bases parecem mais pressuposições que fatos. Porém, antes de apontá-la como uma interpretação inviável, há outro problema que tem de ser analisado.
2. Como entender Atos 2.14; 6.2 e 1Coríntios 15.3-8?
Decerto, esse é o grande desafio dos defensores da ilegitimidade do apostolado de Matias. Não há como advogar essa ideia sem lidar com os textos supramencionados, uma vez que cada um deles menciona doze apóstolos, sem contar com Paulo. Em Atos 2.14, por exemplo, num momento em que o apóstolo dos gentios nem havia se convertido, Lucas relata que Pedro pôs-se “em pé com os onze”. O mesmo ocorre no capítulo 6 de Atos. O versículo 2 diz que “os doze” convocaram a multidão dos discípulos. Ora, ao atender essa convocação, “a multidão dos discípulos” demonstrou que reconhecia Matias como um dos doze. Se não fosse isso, por que atenderiam sem questionar? Poderiam indagar: – O que esse homem faz entre os apóstolos?
Além disso, se a consagração de Matias não foi válida, quem seria então esse décimo-segundo apóstolo mencionado por Lucas? Dizer que era Paulo seria um claro anacronismo. A única resposta possível é: o décimo-segundo apóstolo era Matias. Isso parece evidente, visto que o narrador não faz nenhuma observação que indique o contrário.
Todavia, essa evidência interna parece insuficiente para quem descredibiliza o apostolado de Matias. Por isso, diante dela, eles replicam evocando a distinção entre textos narrativos e normativos, a partir da qual argumentam que as declarações de Lucas não podem ser levadas tão a sério, dado que o livro de Atos é uma narrativa, e não um texto normativo.
A bem da verdade, como destacam Stuart e Fee, “passagens narrativas geralmente não ensinam nada diretamente; ao contrário, elas ilustram o que é ensinado diretamente em outros lugares”[9]. No entanto, isso não significa que a narrativa não possa ser usada para entender como Deus interveio no decorrer da história e lançar luz sobre conteúdos doutrinários. Se assim fosse, Atos 2 não poderia ser usado para esclarecer o ensino de 1Coríntios 12 e 14.
Outrossim, desconsiderar afirmações de um texto bíblico simplesmente porque se trata de uma narrativa é o mesmo que criar um cânon dentro do cânon. As narrativas são fundamentais para o entendimento dos textos normativos. Afinal, elas “ilustram o que é ensinado diretamente em outros lugares” [10]. “Porque tudo que dantes foi escrito para nosso ensino foi escrito” (Rm 15.4a). Logo, as narrativas precisam ser interpretadas, e não descartadas.
Ademais, em 1Coríntios 15.3-8, Paulo corrobora a declaração de Lucas. Ele diz que, após Sua ressurreição, Jesus foi visto por Cefas (Pedro), e depois pelos doze. Depois foi visto, uma vez, por mais de quinhentos irmãos […] depois foi visto por Tiago, depois por todos os apóstolos. E por derradeiro de todos…” apareceu a ele, “como a um abortivo” (1Co 15.5-8).
Observe que o apóstolo Paulo se refere aos doze como se ele não pertencesse ao grupo. Ele relata que viu Jesus somente depois de sua aparição aos “doze”. Ora, se antes de se mostrar a Paulo o Cristo ressurreto apareceu aos doze, é patente que Paulo não fazia parte dos doze. De acordo com Kistemaker, “a diferença entre Paulo e os doze é óbvia: ele submete o seu trabalho à apreciação dos apóstolos (veja Gl 1.18; 2.2,7-10)”[11].
Evidentemente, isso não o torna inferior aos doze. Até porque, todos foram nomeados por Jesus. Inclusive Matias. Ainda que no caso do décimo-segundo apóstolo essa nomeação tenha ocorrido pela instrumentalidade dos onze, em última análise, foi Cristo quem o nomeou. O Espírito Santo ratificou essa nomeação no dia de Pentecostes, enchendo-os e capacitando-os para serem testemunhas (At 2.4,14), em vez de repreendê-los por uma decisão equivocada. Por isso, ninguém questionou seu apostolado nos primeiros séculos da igreja cristã[12].
Contudo, como salienta Kistemaker, apesar de Paulo não preencher plenamente os requisitos detalhados em Atos 1.21,22, ao lado de Pedro, ele “é o apóstolo mais proeminente na igreja primitiva”[13]. Com isso, não queremos sugerir que Paulo pertencia a uma segunda classe de apóstolos. Com efeito, cremos que o apóstolo dos gentios estava no mesmo nível dos doze.
Como sublinha Lopes[14], a Bíblia apresenta algumas marcas do apostolado de Paulo. A primeira delas é o fato de ele ter visto o Cristo ressurreto, o qual apareceu diante dele no caminho de Damasco (cf. At 9.3-8). Essa aparição, conquanto difira da experiência dos doze, dado que ele não chegou a ver o corpo de Jesus, foi uma legítima manifestação do Filho de Deus em seu corpo glorioso, cheio de resplendor (cf. At 26.13). Após isso, Paulo viu Jesus outras vezes (cf. At 18.9; 22.17,18).
Outra marca do apostolado de Paulo é ter sido comissionado diretamente por Jesus (cf. At 26.14-18). Vale ressaltar, entretanto, que o comissionamento de Paulo, tal como o de Matias, foi mediato. Isto é, Jesus usou Ananias para escolhê-lo (cf. At 22.14), assim como usou os apóstolos para eleger Matias. Em Atos 26.14-18, o apóstolo condensa o ocorrido atribuindo tudo a Jesus, sem mencionar Ananias, porque, mesmo usando um homem, quem o chamou foi o próprio Cristo.
A terceira marca são os seus sofrimentos por causa daquele que o chamou. Pois, conforme destaca Lopes, “associado ao chamado apostólico vinha o sofrimento”[15]. Isso foi dito a Ananias antes de seu encontro com Paulo: “Eu lhe mostrarei quanto deve padecer pelo meu nome” (At 9.16). Em 2 Coríntios 11.16-33, há um relato de algumas dessas dolorosas experiências.
Por conseguinte, acreditamos que Paulo e Matias eram apóstolos legitimamente comissionados por Jesus. De modo que o antigo perseguidor dos cristãos estava no mesmo nível dos doze. A diferença entre eles, no entanto, era o foco do seu ministério. Enquanto os doze e os demais judeus cristãos continuavam a observar certos preceitos do judaísmo, tais como orar no templo três vezes ao dia (cf. At 3.1), abster-se de alguns alimentos (cf. At 10.14-15; 11.3; Gl 2.11-14), Paulo se dedicava a comunicar o evangelho aos gentios, sem lhes impor essas coisas.
A manutenção dos costumes judaicos, segundo Lopes[16], fez com que, em geral, os judeus fossem o foco da pregação dos doze. De sorte que, conquanto Pedro tenha aberto a missão aos gentios (cf. At 10 e 11), ela não recebeu ênfase até que Paulo iniciasse seu ministério. É claro que Deus poderia ter despertado os doze para preencherem essa lacuna, mas “aprouve a ele, em vez disso, levantar mais um apóstolo”[17].
Em virtude disso, concluímos que os textos em que os doze são mencionados sem que Paulo esteja incluído não contradizem o ensino neotestamentário acerca do apostolado. Ao contrário, eles o corroboram. Porquanto quatorze indivíduos foram chamados por Jesus para esse ofício: Pedro, André, Tiago (filho de Zebedeu), João, Filipe, Bartolomeu, Tomé, Mateus, Tiago (filho de Alfeu), Tadeu, Simão (o Zelote), Judas Iscariotes, Matias e Paulo. Porém, apenas 13 serviram fielmente.
Certamente, uma declaração como essa gera outros questionamentos. Pensando nisso, nos tópicos seguintes procuraremos oferecer respostas bíblicas às principais indagações levantadas por aqueles que condenam o apostolado de Matias.
3. Por que não substituíram o apóstolo Tiago após seu martírio?
Em Atos 12.1-2, a Bíblia registra o assassinato de Tiago irmão de João. Não obstante, de acordo com o texto, ninguém foi eleito para ocupar o seu lugar. Diante disso, quem sustenta a ilegitimidade do apostolado de Matias, pergunta: se a substituição de um apóstolo morto era necessária para manter o número doze, por que não elegeram alguém para ocupar o lugar de Tiago?
Esse é um questionamento muito pertinente. Pois, se de fato ter doze apóstolos era tão importante, Tiago deveria ter sido substituído. Entretanto, a questão não era manter o número doze a qualquer custo. Na realidade, por entenderem que a igreja deveria ser vista como a continuação direta do Israel veterotestamentário, os apóstolos concluíram, com base nos salmos 41.9; 69.25 e 109.8, que o número de fundadores do novo Israel deveria ser o mesmo do antigo, ou seja, doze[18]. Além disso, diferente de Tiago, Judas era ladrão (cf. Jo 12.4-6) e traidor (cf. Lc 6.16).
Outro ponto interessante na correlação entre o povo de Deus do Antigo Testamento e a igreja primitiva é o fato de que, apesar de ter iniciado com doze patriarcas e mantido o número de doze tribos como referência, Israel tinha treze tribos. Isso porque, embora Jacó tivesse sido pai de doze filhos homens, José recebeu porção dobrada da herança, a qual foi distribuída entre as tribos formadas por seus dois filhos, Efraim e Manassés[19]. A tribo de Levi, por outro lado, não recebeu território tribal. De maneira que, no total, se mantiveram doze territórios, mas na prática existiam treze tribos[20]. Em Números 2 essas treze tribos são relacionadas.
Com base nisso, parece razoável concluir que o número doze era simbólico e aludia à liderança espiritual do povo escolhido, estabelecida por Deus a partir dos filhos de Jacó. Contudo, após percorrer Israel, ensinando nas sinagogas, Jesus constatou que o povo estava sem líderes que os pastoreassem. Eram “como ovelhas que não têm pastor” (Mt 9.36). Por isso, em seguida, Ele chamou os doze e os nomeou seus apóstolos (Mt 10.1). E, como diz Lopes, “Ao nomear doze apóstolos e enviá-los em missão aos judeus, Jesus estava instituindo uma nova liderança espiritual em Israel”[21].
Eis a razão para serem doze: eles representavam o novo Israel[22], isto é, a igreja. Mas, assim como ocorreu com o Israel veterotestamentário, o número doze não está preso a uma literalidade engessada. Afinal de contas, ainda que o número representativo fosse doze, a partir do chamado de Paulo, passaram a existir treze apóstolos. Tal como ocorrera com as treze tribos no Antigo Testamento.
4. Como entender Apocalipse 21.14?
Os argumentos apresentados até aqui parecem suficientes para esclarecer um suposto problema existente em Apocalipse 21.14, onde é dito que os fundamentos do muro da Nova Jerusalém têm “os nomes dos doze apóstolos do Cordeiro”. Os que esposam a tese da ilegitimidade do apostolado de Matias, defendem que só podem existir doze apóstolos, visto que só há doze fundamentos. No entanto, levando em conta que o livro emprega uma linguagem altamente simbológica, e que no Antigo Testamento o número doze era representativo, não podemos concluir que só existiram doze apóstolos, mas sim que o número doze representa o novo Israel.
Essa ideia é ratificada por Apocalipse 7, uma vez que o texto omite a tribo de Dã. Segundo Geisler[23], a omissão ocorre porque os danitas abandonaram sua herança original, ao sul de Israel, e tomaram pela força uma área ao norte de Aser. Ademais, Dã foi a primeira tribo a cair na idolatria. Isso se parece com a situação de Judas: traiu o Senhor e foi substituído. Como Tiago não traiu Jesus, sua morte não exigiu uma substituição.
Para Wiersbe, a retirada de Dã e Efraim da relação de Apocalipse 7 constitui uma indicação de que a interpretação a respeito das tribos e dos apóstolos não deve ser excessivamente literal[24].
Mas, voltando aos fundamentos do muro da Nova Jerusalém, Hernandes Dias Lopes ressalta que o sentido é simbólico, assim como os demais números utilizados no livro. O intérprete, portanto, não deve ficar preso ao número doze. Porquanto, o fundamento apostólico da cidade aponta para a teologia da igreja, e não para o número exato de apóstolos. “A igreja do céu, a noiva do Cordeiro, a Nova Jerusalém está edificada sobre o fundamento dos apóstolos, sobre a verdade revelada, sobre as Escrituras”[25].
Conclusão
Paulo e Matias eram apóstolos. Diferente do que alguns podem pensar, essa asserção não abre margem para a defesa da atualidade do ministério apostólico. Até porque, como afirmamos repetidas vezes, houve apenas treze apóstolos genuínos. O ministério deles foi fundamental para a estruturação e desenvolvimento da igreja. Tanto que os convertidos “perseveravam na doutrina” deles. Entre esses doutrinadores, evidentemente, estava Matias. Porém, depois daqueles homens, ninguém mais ocupou essa posição.
A interpretação de que a consagração de Matias foi um erro apostólico, por outro lado, enfraquece o texto bíblico como Palavra de Deus. Afinal, apesar de o texto fazer uma afirmação clara sobre algo, esses intérpretes se levantam e dizem: – não foi bem assim.
Destarte, conforme foi demonstrado, as bases para a ilegitimidade do apostolado de Matias vêm de pressupostos, e não da Bíblia. Pois o livro de Atos não o desqualifica em momento algum. Aliás, nenhum texto bíblico o faz. Por conseguinte, a conclusão inevitável é que essa interpretação é o produto de uma ideia desenvolvida fora das Escrituras. Nem mesmo a história eclesiástica testemunha a seu favor! Logo, não podemos concordar com seus postulados.
Pr. Cremilson Meirelles
[1] Um erro hermenêutico muito utilizado para sustentar doutrinas sem amparo bíblico. Quem o utiliza, assume que se algo não foi literalmente proibido nas Escrituras sua prática é permitida. Por exemplo, a Bíblia não tem um versículo que diga: “não usarás drogas”; logo, segundo essa visão, seu consumo seria permitido. Esse é um dos erros relacionados por Stuart e Fee no Manual de Exegese Bíblica (cf. STUART, Douglas; FEE, Gordon D. Manual de exegese bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2008, p. 199).
[2] LOPES, Augustus Nicodemus. Apóstolos. São José dos Campos, SP: Fiel, 2014, p. 43.
[3] GINGRICH, Felix Wilbur. Léxico do Novo Testamento. São Paulo: Vida nova. 2005, p. 50.
[4] Cf. BROMILEY, Geoffrey W. Theological Dictionary of the New Testament. Abridged in one volume. Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans Publishing Company, 1985, p. 126.
[5] “Ora, ele disse isto, não pelo cuidado que tivesse dos pobres, mas porque era ladrão e tinha a bolsa, e tirava o que ali se lançava” (João 12.6).
[6] Cf. LYON, Irineu de. Contra as Heresias. Coleção Patrística, v. 4. São Paulo: Paulus, 1995.
[7] Cf. CRISÓSTOMO, João. Comentários às cartas de São Paulo. Coleção Patrística, v. 27/1. São Paulo: Paulus, 2010.
[8] CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiástica. São Paulo: Novo Século, 2002.
[9] STUART; FEE, 2008, p. 53.
[10] STUART; FEE, 2008, p. 53.
[11] KISTEMAKER, Simon. Comentário do Novo Testamento – Exposição de Atos dos Apóstolos. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 99.
[12] A didaskalia Apostolorum, um documento cristão do século III, também relaciona Matias entre os doze (cf. The Didaskalia Apostolorum in english. Translated from the syriac by Margaret Dunlop Gibson. London: C. J. Clay and Sons, 1903, p. 12).
[13] KISTEMAKER, 2003, p. 99.
[14] Cf. LOPES, 2014, p. 62-72.
[15] LOPES, 2014, p. 69.
[16] Cf. LOPES, 2014, p. 72-78.
[17] LOPES, 2014, p. 77.
[18] Cf. STOTT, John R. W. A mensagem de Atos. São Paulo: ABU, 1994, p. 58.
[19] Cf. ARCHER, Gleason Leonard. Enciclopédia de temas bíblicos: respostas às principais dúvidas, dificuldades e “contradições” da Bíblia, 2 ed. São Paulo: Editora Vida, 2001.
[20] Cf. WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expositivo: Novo Testamento, v. 2. Santo André, SP: Geográfica editora, 2006, p. 793.
[21] LOPES, 2014, p. 40.
[22] LOPES, 2014, p. 42.
[23] GEISLER, Norman. Manual popular de dúvidas, enigmas e contradições da Bíblia. São Paulo: Mundo Cristão, 2003.
[24] Cf. WIERSBE, 2006, p. 793.
[25] LOPES, Hernandes Dias. Estudos no livro do Apocalipse. São Paulo: Hagnos, 2005, p. 156.