Decerto, para alguns, essa pergunta não faz sentido. Afinal, quem crê na Bíblia como Palavra de Deus inspirada, reconhece o nascimento virginal de Jesus como uma verdade absoluta. Até porque, isso é explicitamente declarado nas Escrituras (Lc 1.26-37). Contudo, desde o início da era cristã, os opositores do cristianismo têm questionado a veracidade do relato bíblico, acusando os seguidores de Jesus de terem inventado essa história, a fim de encobrir a origem ilegítima do Cristo, e, por conseguinte, favorecer Sua divinização.
O primeiro a registrar essa acusação foi um filósofo grego do século II d.C., chamado Celso; o qual asseverou, com base numa história supostamente recebida de um judeu, que Maria violara o compromisso firmado com José fornicando com um soldado romano, cujo nome era Panthéra. Este, segundo o filósofo, seria o verdadeiro pai de Jesus. Por essa razão, José teria mandado Maria embora. Como resultado, seu parto foi realizado secretamente, e, em seguida, ela e seu filho se mudaram para o Egito. Ali, Jesus começou a trabalhar e aprendeu magia. Ao retornar para sua terra natal, orgulhoso de seus “poderes mágicos”, reivindicou o título de Deus.
Conquanto essa narrativa seja fundamentada no testemunho de alguém que ninguém sabe quem é, ainda hoje, muitos lançam mão dela com o fito de desacreditar a fé cristã. Porém, os que o fazem, claramente, desconsideram sua fragilidade. Haja vista que não existem evidências de que a fonte citada por Celso sequer existiu. Além do mais, não há indicações históricas de que essa história fosse conhecida antes da segunda metade do século II d.C. Porquanto, se fosse algo propagado pelos judeus desde o início da igreja primitiva, Justino (100-165 d.C.) teria apresentado uma refutação em seu diálogo com o judeu Trífon (150 d.C.). Afinal de contas, ele era um apologista da fé cristã. No entanto, não mencionou nada a respeito (CHEVITARESE, 2006). Ora, como uma história que começa a circular oralmente mais de 100 anos depois do ocorrido pode ser veraz? É óbvio que se trata de uma composição posterior com o objetivo exclusivo de depreciar Jesus. Isto é, embora o título de sua obra fosse o discurso verdadeiro, sua história era falsa.
É bem verdade, entretanto, que o Talmud Babilônico (Shabbat 104b) fala de um homem chamado Ben Stada, filho de Miriam (Forma hebraica de Maria), também conhecido como Yeshu ben Pandera, que trouxe consigo a magia do Egito por meio de marcas na sua pele, algo condenado na lei mosaica (Lv 19.28; 1Sm 15.23). De acordo com os rabinos talmúdicos, Stada era um pseudônimo, derivado de palavras hebraicas, que significa: “aquela que se desviou do caminho”. Miriam teria sido chamada dessa maneira por ter deixado seu marido (Sanhedrin 67a), cujo nome era Paphos ben Yehudah, e engravidado de um legionário romano chamado Pandera. Daí, o nome Yeshu ben Pandera, o qual, segundo alguns, seria Jesus de Nazaré.
Todavia, posto que a redação do Talmud tenha iniciado por volta do século II d.C. [1], a maior parte de seu conteúdo foi desenvolvida entre os séculos III e V, e sua conclusão só ocorreu por volta do século VI d.C.; ou seja, evidentemente, a narrativa talmúdica é bastante posterior à crítica de Celso, o que demonstra que o suposto “adultério de Maria” era, na verdade, uma paródia dos evangelhos, e não um relato verídico. Isso fica patente quando o texto talmúdico é interpretado à luz de seu contexto. Senão vejamos: “Paphos ben Yehudah, o pai legal de ben Pandera, teria vivido, segundo o Talmud, na época da segunda guerra judaica (132-135 d.C.) […] ben Pandera, portanto viveu na época do levante de Bar-Kochba, em torno de 130” (LEITE in CHEVITARESE, 2006, p. 285). Por conseguinte, identificar Yeshu ben Pandera como Jesus de Nazaré é um claro anacronismo.
Existe ainda outra passagem talmúdica (Sanhedrin 107b) em que um personagem, denominado Yeshu Ha Notzri, foge para o Egito, torna-se praticante de magia, e desvia muitos israelitas. Em razão das semelhanças, alguns o associam a Yeshu ben Pandera, e, consequentemente, a Jesus de Nazaré. Esse indivíduo, porém, não aparece em todos os manuscritos. “Apenas um entre quatro manuscritos do Talmud contém essa denominação” (LEITE in CHEVITARESE, 2006, p. 286). Mas, como o hebraico notzri aparece em Jr 4.16 como referência àqueles que avançam contra os judeus, sempre houve quem associasse esse Yeshu ao fundador do cristianismo. No entanto, a história de Yeshu Ha Notzri se passa no tempo do rei asmoneu Alexandre Yannai (103-76 a.C.). Logo, esse Yeshu não pode ser Yeshu ben Pandera, e muito menos Jesus de Nazaré. Do contrário, teríamos mais um anacronismo.
Não obstante, durante a Idade Média, surgiu uma coletânea de paródias dos evangelhos que ficou conhecida como Sêfer Toledôt Yeshu. Era uma espécie de antievangelho, construído a fim de satirizar as narrativas cristãs. Por conta disso, se tornou popular entre os inimigos da cruz de Cristo. Contudo, a autenticidade de suas afirmações é altamente questionável. Porquanto, embora algumas de suas histórias já circulassem entre os judeus no final da Antiguidade, “a mais antiga menção do Toledôt, como uma composição escrita, é a feita por Agobard, arcebispo de Lion, cerca de 726-780 d.C., e de seu sucessor Amulo, cerca de 849 d.C., a qual coincide com os mais antigos manuscritos do Toledôt Yeshu” (BOTELHO, 2016, p.4).
Ao que parece, o Toledôt Yeshu é uma compilação/edição dos argumentos de Celso e das narrativas talmúdicas sobre Yeshu. Mas, assim como ocorre no Talmud, há uma discrepância temporal que dificulta a identificação do Yeshu do Toledôt com o Jesus da Bíblia. Pois, sua história ocorre no mesmo período da narrativa de Yeshu Ha Notzri, isto é, entre 103-76 a.C.:
No ano de 3651 (cerca de 90 a.C.), na época do rei Janeus uma certa infelicidade aconteceu em Israel. Um certo homem abominável da tribo de Judá surgiu, cujo nome era José Pandera. Ele vivia em Belém da região de Judá. Perto de sua casa vivia uma viúva e sua amável filha virgem Miriam (Maria). Miriam estava comprometida com Yohanan, da casa real de Davi, um homem erudito na Torá e temente a deus. Próximo a um Shabbat, José Pandera, atrativo como um guerreiro na aparência, libidinosamente flertou com Miriam. Então, ele bateu na porta do quarto dela e a enganou fingindo ser o seu noivo, Yohanan. […]. Mais tarde, quando Yohanan veio vê-la, Miriam expressou seu espanto com o comportamento tão estranho ao seu caráter. Assim, ambos vieram a reconhecer o crime de José Pandera e o terrível engano de Miriam (Maria). Então, Yohanan e Miriam foram até o rabino Simon ben Shetah e relataram a trágica sedução. Carecendo de testemunha exigida para a punição de José Pandera, e Miriam estando grávida, Yohanan fugiu para a Babilônia. Miriam deu à luz um filho e o denominou Yehoshua, segundo o nome de seu irmão. Este nome mais tarde se deteriorou para Yeshu (Jesus) (op. cit., p.6).
Vale ressaltar que, conquanto essas acusações sejam antigas, na atualidade há muitos que as trazem à tona como se fossem informações novas, ocultadas pela igreja ao longo dos séculos, por causa de sua pretensa irrefutabilidade. Esses, geralmente, ignoram as respostas cristãs, que são tão antigas quanto as críticas. As primeiras refutações, por exemplo, foram apresentadas por Orígenes (184-254), na primeira metade do século III d.C., no livro intitulado Contra Celso. Aliás, foi justamente devido a essa obra que as palavras de Celso chegaram até nós. Esse fato, por si só, evidencia que os cristãos não ocultaram informações. Até porque, se quisessem fazê-lo, deveriam eliminar o texto de Orígenes.
Inobstante, os Celsos deste tempo continuam repetindo os argumentos do segundo século como se fossem descobertas atuais. Uma de suas alegações preferidas diz respeito à tradução de Isaías 7.14 na LXX [2]. Isso porque, para eles, a virgindade de Maria seria uma invenção cristã, e não uma verdade afirmada desde o Antigo Testamento. A base para essa conclusão é o termo traduzido como “virgem” no versículo citado, o hebraico ῾almâ, que “pode significar uma mulher jovem, casada ou solteira” (COENEN; BROWN, 2000, p. 575), mas que na versão dos Setenta, foi traduzido como parthénos, palavra grega que significa virgem; o que, na visão dos opositores do cristianismo, teria sido um erro crasso, uma vez que, na maioria dos versículos em que ῾almâ aparece (Êx 2.8; Sl 68.25; Ct 1.3; 6.8), a tradução da LXX é neanis (moça, donzela, jovem casada). Parthénos, por outro lado, só ocorre duas vezes (Gn 24.43; Is 7.14). Partindo desses dados, os antagonistas asseveram que os tradutores da LXX se equivocaram, e os cristãos se aproveitaram disso para construir a doutrina do nascimento virginal de Jesus, utilizando, em Mt 1.23, a versão grega de Is 7.14.
A bem da verdade, ῾almâ não é um termo exclusivamente usado para designar a virgindade de uma mulher. Seu sentido mais comum é de “uma mocinha ou mulher da idade da puberdade (cf. Pv 30.19), até que dá à luz o seu primeiro filho” (op. cit., p. 1351). Isto é, “a mulher deixa de ser ῾almâ quando se torna mãe, não quando se tornar esposa ou parceira sexual” (VANGEMEREN, 2011, v.3, p. 417). Isso não impede que o vocábulo seja usado para identificar uma virgem. Afinal de contas, humanamente falando, uma mulher intocada não pode estar grávida, e, portanto, sua condição está, necessariamente, incluída na abrangência semântica de ῾almâ.
Isso é corroborado pela versão da LXX de Gn 24.43. Haja vista que os Setenta empregaram o grego parthénos para traduzir o hebraico ῾almâ: “eis que estou junto à fonte de água; seja, pois, que a donzela (῾almâ / parthénos) que sair para tirar água e à qual eu disser: Ora, dá-me um pouco de água do teu cântaro”. A donzela (῾almâ) em questão é Rebeca, a qual é apontada pelo texto (Gn 24.16) como bᵉthûlâ (palavra hebraica que se refere a uma jovem, geralmente virgem, em idade para casar). Isso evidencia a afinidade semântica entre ῾almâ e bᵉthûlâ, visto que ambas têm a virgindade como característica. A principal distinção entre os termos está no ato que muda sua condição. De modo que para deixar de ser bᵉthûlâ uma moça tem de se casar; mas permanece como ῾almâ enquanto não for mãe. Por isso, os dois termos são aplicados à condição de Rebeca em Gn 24.
Tendo essa noção, os Setenta, ao traduzir o hebraico ῾almâ, optaram por um termo grego que expressasse o estado em que se encontrava a futura esposa de Isaque. Ora, o servo de Abraão jamais escolheria uma mulher que não fosse virgem ou não pudesse ter filhos. É claro, entretanto, que sua escolha foi dirigida pelo Senhor (Gn 24.42-44). Mas, considerando o contexto, virgindade e fertilidade não poderiam ser descartadas. Sendo assim, com toda certeza, ele pressupôs que as jovens que tiravam água da fonte atendiam esses requisitos. Por essa razão, em Gn 24.43, conclui que qualquer uma delas que lhe desse de beber seria, sem dúvida alguma, uma ῾almâ. Ou seja, uma mulher apta para casar e ser mãe.
Isso posto, depreende-se que “o fato de o termo parthénos usado por Mateus (Mt 1.23) e pela LXX (Is 7.14) significar virgem e de ῾almâ também significar virgem é o bastante para a identificação do cumprimento profético” (loc. cit.). Mesmo porque, a virgindade de Maria independe de Is 7.14. Com efeito, ela se baseia no testemunho dos evangelistas (Mt 1.18; Lc 1.26-35). A citação de Isaías apenas apresenta o acontecimento como a efetivação do que fora profetizado. Isso é claramente declarado por Mateus: “Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que foi dito da parte do Senhor pelo profeta” (Mt 1.22).
Além do mais, conforme comenta Soares (2003, p. 87), “é muito suspeito que só depois do surgimento do Cristianismo que os rabinos procuraram reavaliar o significado dessa palavra. Foram os próprios rabinos que colocaram-na na Septuaginta”. Por conta disso, é provável que essa crítica seja mais uma tentativa de deslegitimar a messianidade do Filho de Deus, motivada pela animosidade contra os cristãos.
Todavia, a despeito das motivações, a verdade é que há muitas pontas soltas nessa argumentação. Uma delas é a suposição de que a tradução de Is 7.14 na LXX estaria errada. Algo um tanto quanto paradoxal. Pois, essa afirmação se fundamenta no pressuposto de que os outros textos foram traduzidos corretamente. Afinal, de acordo com os críticos, a tradução correta para ῾almâ seria neanis, porque é isso que acontece em outros trechos da LXX. Ou seja, a tradução só é confiável quando convém. Uma clara demonstração de parcialidade.
Outra fragilidade argumentativa é ideia de que o único sentido de bᵉthûlâ seja “jovem virgem e solteira”. Porquanto, há indícios de que essa limitação semântica não seja respaldada pelas Escrituras. Isso pode ser constatado, por exemplo, em Jl 1.18, onde se menciona uma bᵉthûlâ que tem um ba῾al (marido), dando a entender que o termo é usado com uma conotação diferente de seu emprego em Gn 24.16. Até porque, é óbvio que, uma vez consumado o casamento, a mulher deixa de ser virgem. De forma que, pelo menos em tese, bᵉthûlâ não deveria pertencer a esse contexto. Semelhantemente, em Et 2.17-19 bᵉthûlâ é aplicado às mulheres do harém real, mesmo depois de terem passado a noite com o rei.
É bem verdade, porém, que essas passagens, embora gerem incerteza acerca da amplitude semântica de bᵉthûlâ, não são tão claras ao ponto de derrubar o argumento dos opositores. Dado que, como explica Vangemeren (2011, vol. 1, p. 758), é possível supor que, em Jl 1.18, “o matrimonio não foi consumado e, portanto, a mulher ainda está tecnicamente na casa de seu pai”.
Apesar disso, considerando o texto hebraico de Is 7.14, pode-se perceber que o que se tem em vista é um ato portentoso do Senhor. Senão vejamos: o vocábulo traduzido como sinal é o hebraico ’ôth, o qual é usado frequentemente para indicar as manifestações extraordinárias do Todo-poderoso. À vista disso, fica difícil imaginar o motivo pelo qual se usaria ’ôth para referir-se a uma gravidez natural. Evidentemente, a intenção do autor era apontar para um evento miraculoso. Decerto, essa foi a interpretação dos tradutores da LXX. Por isso, mais de dois séculos antes de Jesus nascer, concluíram que o texto falava de uma concepção virginal, e utilizaram parthénos ao invés de neanis.
Ante o exposto, fica patente a inconsistência das acusações levantadas contra o maior evento da história (a encarnação do verbo), revelando a má fé (e a falta de fé) de quem as defende. A teologia liberal, sem dúvida alguma, é a força motriz desses questionamentos. Todavia, como foi mencionado, isso não é novidade. Críticas ao Cristianismo são e sempre serão uma realidade. Por consequência, cabe aos servos de Deus estar aptos para responder com mansidão e temor a qualquer que pedir a razão da sua fé (1Pe 3.15), oferecendo a todos a oportunidade de se arrepender e crer no evangelho.
Pr. Cremilson Meirelles
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVAREZ, Rodrigo. Maria: A biografia da mulher que gerou o homem mais importante da história. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2015.
ASLAN, Reza. Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
BOTELHO, Octavio da Cunha. O Retrato Hostil de Jesus no Toledoth Yeshu. Academia.edu, Edição Eletrônica, 2016. Disponível em: <https://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2016/10/07/jesus-no-talmude>. Acesso em: 28/12/2019.
CHEVITARESE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica. Uma outra história: Jesus de Nazaré. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2006.
COENEN, Lothar; BROWN, Colin. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. Trad. Gordon Chown. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2000. 2 v.
ORÍGENES. Contra Celso. Coleção Patrística. São Paulo: Paulus, 2004.
SOARES, Esequias. Manual de Apologética Cristã. Rio de Janeiro: CPAD, 2003.
STERN, David H. Comentário Judaico do Novo Testamento. São Paulo: Editora Atos, 2008.
The William Davidson Talmud.Disponível em: https://www.sefaria.org/Shabbat.104b?lang=bi. Acesso em 28/12/2019.
VANGEMEREN, Willem A. Novo dicionário internacional de teologia e exegese do antigo testamento. Vol. 1.São Paulo: Cultura Cristã, 2011.
VANGEMEREN, Willem A. Novo dicionário internacional de teologia e exegese do antigo testamento. Vol. 2.São Paulo: Cultura Cristã, 2011.
VANGEMEREN, Willem A. Novo dicionário internacional de teologia e exegese do antigo testamento. Vol. 3.São Paulo: Cultura Cristã, 2011.
[1] https://sefer.com.br/o-que-e-o-talmud/4/
[2] Versão grega do Antigo Testamento, conhecida como Septuaginta.