Tem sido comum compreendermos que a salvação é um presente que Deus dá para a pessoa e temos abundantes textos bíblicos que demonstram isto. Um ponto para refletirmos será se a salvação que Jesus nos oferece será apenas destinada ao indivíduo ou há algo a mais para compreendermos.
Em primeiro lugar será necessário recuperar a compreensão da história da ação divina, diria da “economia divina”, como chamamos na Teologia, em que temos continuamente a Trindade em ação movendo-se na linha do tempo. Em geral aprendemos a dividir a história humana pelo menos em três períodos a partir de cada pessoa da Trindade: a criação com Deus Pai, a salvação com Deus Filho e o período da Igreja com Deus Espírito Santo. E assim perdemos o ensino bíblico da Triunidade e corremos o risco de pen- sar em três agentes divinos que, en- quanto um trabalha, os outros ficam como que “desocupados”.
É atribuída a Tertuliano, um dos pais da Igreja, a frase “quereis ver a Trindade ide ao Jordão”. Melhor seria dizer “quereis ver a Trindade, comece por ir à criação!” pois desde os primeiros tempos temos a Trindade em ação. Veja que em Gênesis 1.2, temos o Espírito participando da obra da criação. Se Jesus é o “logos” – a palavra – em João 1.1 e Deus pela “palavra” criou o mundo, Ele também esteve presente. João continua afirmando que “Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez” (vv.2,3; Cl 1.16). E, para completar, em Gênesis 3.22 temos o plural majestático “nós” representando as três pessoas da Trindade que estavam ali participando da origem do Universo. Uma Teologia “trinitariocêntrica”.
Assim, tudo o mais que ocorre na linha do tempo envolve a grande história de Deus (Trindade) e não é diferente após a rebelião no Éden (Gênesis 3). Aliás, em 3.15 temos o primeiro Evangelho (“protoevangelho”), quando Deus se dispôs a recuperar toda a criação, que a partir daquele momento sofria as consequências da rebelião de Adão/ Eva que desejaram ser autônomos e gerenciarem sua vida por conta própria. Então a salvação, toda a obra de Jesus Cristo que morreu na cruz para nos salvar, necessita ser considerada dentro da visão e participação trinitária. Sobre isso Goheen nos lembra que “se confessarmos apenas ‘Jesus é meu Salvador pessoal’ e negligenciarmos que ‘Jesus é Criador, Regente, Redentor e Juiz’, então temos uma cosmovisão atrofiada. Uma cosmo- visão bíblica tem a ver com entender corretamente quem é Jesus” e eu acrescentaria, e a vasta extensão de sua obra.
Assim, em segundo lugar, “Deus está agindo com amor e poder para restaurar uma criação caída […] para que ela torne a viver debaixo do gover- no bom e gracioso dele” (Goheen). As consequências da rebelião no Éden foi muito mais além do que atingir apenas os dois primeiros indivíduos – Adão e Eva – e mesmo apenas a sua vida espiritual.
Claro, logo de início, provocou ruptura entre a humanidade criada e Deus o Criador, tanto que Adão e Eva foram expulsos do jardim do Éden.
Mas outros efeitos danosos surgiram que superaram o aspecto espiritual, entre eles:
Consequências emocionais, pois tiveram medo e se esconderam de Deus (Gênesis 3.8-10);
• Ruptura relacional, quando Adão lança a culpa na mulher (v.12);
• Ruptura no trato das decisões gerando liderança hierárquica e de poder (v.16);
• Desajustes na saúde biológica, com a multiplicação das dores do par- to (v.16);
• Doenças ocupacionais, com o sofrimento proveniente do trabalho (v.17);
• Desastre ambiental/ecológico, em que a terra passaria a produzir ervas daninhas (v. 18).
Ao ser retirado do jardim do Éden, Adão e Eva não tiveram mais acesso à árvore da vida, que lhes garantia estabilidade vital e, assim, seu corpo passa a ser degradável até a morte física.
Assim, a partir daquele momento, a vida humana passa a ser construída por meio da autonomia “conquistada” pela decisão em romper contra Deus quando tomaram do fruto do conhecimento do bem e do mal. A liberdade leva não apenas Adão e Eva à escravidão e destruição, mas a toda criação. O “mandato cultural” para que se multiplicassem e administrassem ao jardim (Gênesis 1.26ss), agora ficou por conta própria, não mais sob a orientação constante de Deus (Gênesis 3.8). Então a própria cultura e todos os seus componentes também passam pelo processo de perversão e passam a gerar um mundo corrompido. A gestão da natureza, da criação, passa a ser perversa e destrutiva, pois “o pecado contamina e desfigura cada milímetro da criação” (Goheen).
A totalidade da cultura, da sociedade e da civilização, que deveria ser desenvolvida sob a supervisão de Deus (heteronomia), passa a ser violentada pela autonomia perversa humana de- caída. Toda a criação passa a sofrer pois o “pecado contamina e desfigura cada milímetro da criação” (Goheen).
Assim, em terceiro lugar, a obra salvadora de Jesus inclui a salvação de indivíduos arrependidos, mas é muito mais ampla e pretende resgatar e redimir toda criação decaída. Resgatar a humanidade de sua cosmovisão pagã, autônoma e libertária. Ao morrer e dar a sua vida, Jesus estava cumprindo o protoevangelho (Gênesis 3.15) vencendo a Satanás que levou a humanidade ao desastre, e reconquistando nova- mente o espaço de Rei sobre toda a criação e sobre a história.
Aos crentes de Éfeso (1.9,10) Paulo esclarece a amplitude da obra de Jesus Cristo demonstrando que o plano divino foi “de fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as do céu, como as da terra”. Assim, a obra salvadora de Jesus alcança a recuperação e resgate de toda a criação, além do indivíduo que se arrepende de seu estado de rebelião e aceita a morte a ressurreição de Jesus.
Infelizmente temos a “tendência de reduzir o evangelho a uma solução para o problema do nosso pecado individual e a um cartão magnético para abrir a porta do céu, de modo que substituiremos essa impressão reducionista por uma mensagem que tem a ver com o reino cósmico de Deus, em Cristo, que, no final, erra- dicará o mal do universo de Deus e resolverá nosso problema de pecado individual, obviamente” (Christopher Wright). E é possível que esse individualismo tenha sido introduzido em nossa teologia pelo Iluminismo e ressaltado mais ainda agora pela Pós-Modernidade.
O que podemos deduzir com tudo isso é que a salvação operada por Jesus Cristo é individual, mas não individualista. Essa percepção individualista tem sido nociva ao desenvolvimento do Evangelho e o seu alcance para além da intencionalidade missionária (pregação verbal, plantação de igrejas, evangelização etc.). O individualismo em geral acaba levando pessoas sal- vas a buscar uma religiosidade otimizada e individual de um Deus que venha a priorizar soluções para seu projeto pessoal de vida desenvolvendo um cristianismo individualista e customizado, em vez de um Evangelho que coloque a pessoa no mundo para desenvolver a sua dimensão missional, sendo um elo entre Deus e a sociedade, a criação, como sal e luz. Tem leva- do as pessoas salvas a se recolherem dentro de suas igrejas dominicalmente, sem que percebam que “a igreja é um povo enviado ao mundo sete dias por semana como testemunhas do reino de Deus, em contraste com a igreja como um povo reunido um dia para adoração” [e ocupação religiosa] (Newbigin).
Depois da rebelião no Éden o centro de cada cultura que molda todos os aspectos da vida social, cultural e se organiza em rebelião contra Deus e contra a sua criação. A reversão desse processo de degradação deverá ser muito mais ampla e necessitará mais do que apenas uma mensagem verbal, tornar-se-á necessário que a vida de cada salvo seja realmente transforma- da por essa salvação de modo a ser ele tradução de Deus como seu instrumento profético para que também a sociedade, a cultura, a criação enfim, sejam alcançados pela redenção e recuperação operada pela obra completa de Jesus Cristo.
Ao ser salvo, cada um de nós, tem o compromisso de dar um “reset” em sua vida de modo que o nosso projeto de vida, a partir daquele momento, é o projeto da missĭo Dei aos nos entregarmos como ferramentas de Deus para que ele, em sua missão de restaurar toda criação, inclusive o indivíduo, nos tenha como seus instrumentos. Isso é mais do que só ter um cartão magnético para entrar no céu, é mais do que apenas frequentar os cultos domini- cais, requer replanejamento total de nossa história de vida.
Tudo começou em um Jardim (Gênesis 1-2) com o Criador, tudo será por ele restaurado e iremos para uma cida- de – a Nova Jerusalém (Ap).
Pr. Lourenço Stelio Rega – Extraído do OJB.