Imagine uma situação em que um médico especialista recebe uma ligação do médico chefe do hospital que lhe indaga que ele não está fazendo muitas cirurgias e ele responde que seus pacientes não estão precisando. O chefe clínico, então, o adverte que ele precisa cumprir as metas do hospital.
Se o paciente não precisa de cirurgia, não precisa e ponto final. Esse é um lado da situação. Mas, então, por outro lado, o que está por trás dessa situação? A “mercadorização” do paciente? A mercantilização da Medicina? O corpo deixou de ser humano virou insumo para gerar recursos financeiros e lucratividade?
Isso também se aplica à educação, especialmente universitária, que tem sido dominada por grandes conglomerados econômicos, em que os alunos viraram “peões” na “cadeia de suprimento” financeiro da organização. Há muito curso universitário que tem uma porta escancarada de ingresso com facilidades no processo seletivo e que, ao longo do curso, o aluno não consegue acompanhar as exigências e as turmas vão ficando pequenas, pois afinal alunos que fazem bem o exame ENADE do MEC/INEP pontuam para a instituição em seus índices avaliativos. Quer dizer, as turmas iniciais, em maior volume, de certa forma “financiam” as turmas menores de final de curso. É um “jogo” financeiro, mas não necessariamente preocupado com a educação e formação adequada de alunos ingressantes.
Nessa área do ensino universitário também temos recente ocorrência de intervenção governamental que está exigindo nova regulamentação no ensino a distância (EaD), pois as equipes avaliadoras detectaram que muitas universidades tinham apenas alguns poucos tutores para atender milhares de alunos. Então, além da medicina, a educação virou rentável negócio.
E o que isso tudo a ver com a ideia de valor e valores? A palavra valor aqui tem a ver com aquilo que valorizamos, priorizamos, mas também com aquilo que tem conexão com o que pode ser chamado de respeitoso, ético, valores éticos.
Então, a partir disso, você já pode deduzir que vivemos em um cenário de mundo em que as prioridades, os valores, estão sendo “desvalorizados”, trocados. O corpo humano deixa de ser humano, instrumento da história e identidade de alguém para ser “commodity”, seja em algum sistema médico, ou mesmo educacional. A pessoa deixa de ser sujeito histórico que tem um projeto de vida, pois, aqui o valor, a prioridade estão na obtenção de lucro.
Outro exemplo, quando alguém pensa que tem sucesso pela quantidade de seguidores nas redes sociais ou que algo se torna verdadeiro por estar sendo divulgado amplamente (se diz que viralizou), ainda que não seja compatível com a realidade dos fatos. Me lembro que, antes das redes sociais, um enorme veículo de comunicação, para incentivar engajamento, divulgou uma determinada reportagem com a seguinte frase: “venha saber o que existe além dos fatos!” De imediato pensei: “mas existe algo além dos fatos?” E hoje existem as “fake news” que, embora sejam “fakes” são “news” e se tornam “fatos” como estopim para a era chamada de pós-verdade. Pós- -verdade, pois, algo que foi espalhado, viralizado, mesmo não sendo necessariamente verdade, passa a se reconsiderado como verdade inquestionável.
Falei em valor, valores e ética, então temos de lembrar que ética é um conjunto de princípios que indicam um caminho a seguir, como um GPS. Então, de certa forma, todos temos valo res, todos temos uma ética, pois todos temos de decidir, e mesmo uma não- -decisão é uma decisão, a de não decidir. Nascemos como seres livres em que isso é um dos mais importantes atributos da natureza humana. Mas, o mais importante é saber quais são as fontes de nossa ética, de nossos valores. Se partirmos do utilitarismo ou pragmatismo poderemos defender as metas cirúrgicas a serem alcança das, ainda que atinjamos as pessoas.
Ou mesmo a quantidade de seguido res e se algo que dissemos nas redes sociais “pegou” ou não “pegou”, seja verdade ou não. Ou ainda se o balanço da faculdade ou universidade de fato deu superávit, não im portando se a instituição de fato tinha a educação como seu principal objetivo.
Aliás, falando em funcionamento organizacional há uma clássica ilustração para demonstrar a necessidade de equilíbrio em seu funcionamento. Nesse caso é possível utilizar o exemplo de um pássaro ou mesmo de um avião, em que deve haver equilíbrio entre as duas asas para que se mantenha o pássaro ou o avião em voo cumprindo seu papel. Enquanto uma asa representa a missão, razão de ser, objetivos de existência da instituição ou de um projeto, a outra asa representa a sustentabilidade envolvendo os recursos, a gestão financeira e patrimonial.
Nesse caso, poderá haver situações em que estará em jogo a manutenção do equilíbrio entre as duas asas. Pode ocorrer que, para se manter a sustentabilidade, coloca-se em risco a missão, a razão de ser da organização e isso poderá, inclusive, levar a desastres futuros. Em um caso desses o valor financeiro poderá estar substituindo o valor e a priorização contra pessoas e colaboradores do projeto ou organização afetando a missão e razão de ser.
Então o que fazer? Se há falta de recursos ou alguma emergência que coloca em risco o projeto ou organização, pois a “asa da sustentabilidade” está perdendo o equilíbrio, é possível engajar e encantar os colaboradores a participarem em conjunto em algum projeto de recuperação da sustentabilidade. Aí os valores serão mantidos respeitando “gente”, pessoas, e ao mesmo tempo a sustentabilidade caminhará para o equilíbrio. A experiência em gestão estratégica nos leva a essa busca de equilíbrio, que vai exigir dose muito maior de percepção e acompanhamento do líder.
O valor de ter valores aponta para um destino ideal e maduro de qualquer pessoa, organização ou projeto e pode até não ser objeto de compreensão quando valores e prioridades deixam de considerar a importância de pessoas como sujeitos históricos e até mesmo a oferta de produtos e serviços seguros, funcionais e de elevada qualidade. Um exemplo simples de durabilidade inquestionável é a história da própria caneta BIC que atravessa gerações oferecendo qualidade e funcionalidade a custo acessível.
Defendo um conjunto de princípios éticos que tenho chamado de “ética mínima” que nos traz uma coleção de cerca de 17 itens ou princípios que indicam um caminho de vida saudável, respeitoso, que valorizam nosso papel como indivíduos, valorizam relaciona mentos e bem-estar, valorizam o ambiente e a vida como o maior bem que recebemos como sujeitos históricos. Em artigo futuro espero detalhar mais essa “ética mínima”.
O valor de ter valores é que em vez de eu sobreviver, vou aprender a SABER viver e deixar de ser consumidor da realidade para ser participante da construção da história com meu projeto de vida com qualidade.
Pr. Lourenço Stelio Rega – Eticista e Especialista em Bioética pelo Albert Einstein Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa (Hospital Albert Einstein). Extraído do OJB.