Introdução
Conquanto o relato da cura do paralítico no tanque de Bethesda (cf. João 5.1-9) tenha se tornado tema de canções e pregações populares, há quem pense que os eventos narrados no texto não ocorreram da maneira como são apresentados nas Escrituras. Para esses, a presença de um anjo no tanque bem como a movimentação das águas, são o registro de uma das crendices daquele tempo. Com base nesse pensamento e a despeito do testemunho bíblico, muitos têm defendido que nunca houve um anjo agitando as águas daquele tanque.
Apesar de não haver nada no texto que justifique essa tese, suas premissas têm encontrado ampla aceitação entre os pregadores evangélicos. Por conta disso, vez ou outra, essa ideia é comunicada por meio do púlpito; o que contribui para sua “oficialização”. Ou seja, mesmo que não haja respaldo bíblico, a repetição vai, pouco a pouco, conferindo legitimidade à teoria e tornando-a inquestionável.
Contudo, se analisarmos friamente esses argumentos concluiremos que, ao chamar o relato de crendice, esses pregadores estão dizendo que a Bíblia está errada. Afinal, apesar de ela afirmar que um anjo descia e movimentava as águas, não era isso que realmente acontecia. Em outras palavras, a Escritura fornece uma informação que não condiz com a realidade.
Todavia, em nenhum lugar da Bíblia as afirmações do referido trecho são negadas ou desqualificadas. Por que, então, alguns insistem em dizer que essa informação deve ser descartada? Como resolver esse dilema?
Antes de propor uma solução, é importante frisar que, ao apontarmos a aparente incoerência e falta de respaldo da tese supracitada, não estamos chamando todos os seus defensores de hereges ou de liberais. Muitos, na verdade, propagam esse ensino por falta de esclarecimento ou por seguirem na esteira de pregadores ou comentaristas renomados.
Levando isso em conta, e visando subsidiar uma reflexão mais embasada, nas linhas abaixo apresentaremos a origem dessa ideia, suas fragilidades e, por fim, ofereceremos um caminho interpretativo que consideramos mais viável.
1 – Como surgiu esse dilema?
A bem da verdade, acredito que a pergunta correta deveria ser: “quem inventou esse dilema?” Até porque, conforme ressaltado na introdução, o texto não testemunha contra si mesmo. Então, de onde veio a ideia de que o relato contém informações espúrias? Evidentemente, é uma conclusão que veio de fora para dentro.
O caminho para inserção dessa teoria no imaginário cristão foi a crítica textual, uma forma irreverente de tratar o texto bíblico, desenvolvida a partir do século XIX, cujo pressuposto fundamental é a ideia de que as Escrituras, como qualquer outro tipo de literatura, podem conter erros, contradições e acréscimos posteriores ao fechamento do cânon.
Com a justificativa de ser uma conclusão resultante da utilização de um método científico, estudiosos investiram na produção de argumentos que a confirmassem. Isso os levou ao desenvolvimento de versões críticas do Novo Testamento, baseadas nas variantes textuais. Esse esforço culminou na produção de uma versão que ficou conhecida como “texto crítico”, cujo representante mais popular é o Novum Testamentum Graece, desenvolvido por Eberhard Nestle e Kurt Aland. Por causa dos sobrenomes de seus principais editores, a obra passou a ser chamada de Nestle-Aland.
Esse texto crítico se tornou a base da maioria das versões das Escrituras disponíveis no mercado. Ele foi produzido a partir da recensão[1] dos manuscritos mais antigos do Novo Testamento. Contudo, sua construção se fundamentou principalmente em dois manuscritos do século IV d.C.: o Códice Sinaítico (330-360 d.C.) e o Códice Vaticano (330-360 d.C.), textos que são frequentemente representados pelas letras ﬡ e B, respectivamente.
Por estarem entre os exemplares mais antigos do Novo Testamento, os adeptos da crítica textual consideram ﬡ e B como autoridade infalível para definição do que deve permanecer e o que deve ser retirado das Escrituras.
Nesses códices, o versículo quatro e parte do versículo três do capítulo cinco de João estão ausentes. Foi com base nisso que os críticos passaram a tratar como espúria a informação de que um anjo movia as águas do tanque de Bethesda. Desde então, essa conclusão foi inserida em muitos comentários bíblicos e rapidamente chegou aos púlpitos.
Isso é sintomático, pois o papel dos pregadores na propagação desse ensino chama atenção para a influência dos comentaristas sobre a pregação. Essa é uma parte do problema que muitos não querem enxergar. Porque os comentários bíblicos mais procurados são produzidos por teólogos de grande envergadura, os quais a maioria não ousa questionar. Dessa forma, os leitores tendem a encarar suas afirmações como revestidas de autoridade. O resultado dessa postura é a aceitação acrítica de suas premissas. De modo que o pregador deixa de enxergar pelas lentes das Escrituras para ver através dos óculos do comentarista.
O perigo dessa perspectiva está na supervalorização dos comentários em detrimento das Escrituras, haja vista que o intérprete encara o texto bíblico com desconfiança, mas vê as palavras do comentarista como confiáveis. Ou seja, é como se transferisse a inspiração da Bíblia para os comentários.
Não obstante, no tocante ao texto crítico, é importante estar atento, dado que até mesmo expoentes da teologia cristã conservadora, como F. F. Bruce e William Hendriksen, utilizam essa obra como norte para interpretação das Escrituras. Em relação ao episódio narrado em João 5, por exemplo, ambos concluem que não devemos considerar a referência ao anjo como uma fala do evangelista. Com efeito, essa cena deve ser entendida como uma nota acrescentada posteriormente ao texto para explicar a razão do grande ajuntamento de enfermos no local.
Para Bruce, esse acréscimo refletiria “a crença popular sobre a causa das propriedades terapêuticas atribuídas à água.”[2] Hendriksen, por outro lado, apesar de entender que o versículo quatro provavelmente foi construído a partir da opinião do enfermo, expressa no versículo sete, afirma que “não devemos excluir a possibilidade da atuação sobrenatural de um anjo.”[3] Até porque, conforme observa Hendriksen, nem sempre as interpolações trazem informações falsas. Às vezes, elas expõem um conteúdo verdadeiro.
Mesmo assim, por causa da fragilização do relato bíblico inerente a essa argumentação, muitos passaram a supor que a narrativa de João 5.4 descreve uma superstição que predominava entre os que peregrinavam até o tanque. Uma das bases para esse argumento são as descobertas arqueológicas encontradas nas proximidades do tanque de Bethesda. Porquanto, foram identificados naquela região símbolos associados ao deus grego Asclépio, conhecido pelos romanos como Esculápio, uma divindade associada à medicina e à cura. A partir daí, desenvolveu-se a tese de que o lugar em que Jesus curou o paralítico era um centro de adoração pagã.[4]
A despeito da aparente lógica argumentativa, nas linhas a seguir procuraremos responder a cada uma dessas acusações. É possível que as respostas não te convençam totalmente, mas, no mínimo, elas demonstrarão que quem abraça essas teorias tem de lidar com um dilema fundamental: o enfraquecimento da integridade das Escrituras.
2 – A evidência interna
Os argumentos apresentados acima constituem apenas parte da discussão sobre o assunto, haja vista que existem teólogos que defendem a veracidade e canonicidade da informação registrada em João 5.3b-4. Por conseguinte, para uma conclusão equilibrada, é preciso dar voz ao outro lado da controvérsia.
W. Hall Harris, membro da diretoria do Center for the Study of New Testament Manuscripts[5], apesar de não ser um dos defensores mais ferrenhos da autenticidade de João 5.3b-4, é um dos teólogos que desconfiam dos argumentos contrários à canocidade desse texto. Ele entende que a explicação presente no versículo quatro parece se alinhar com o estilo joanino, o qual é caracterizado por comentários e notas explicativas para familiarizar o leitor com o contexto.[6]
Essa característica pode ser identificada em vários trechos do evangelho de João. Senão vejamos: no encontro de Jesus com a mulher samaritana, o evangelista observa que os judeus não se comunicavam com os samaritanos (cf. João 4.9); no relato acerca do discurso de Jesus em Jerusalém, no último dia da festa dos tabernáculos, ele explica que o Mestre falava a respeito do Espírito Santo “que haviam de receber os que nele cressem; porque o Espírito Santo ainda não fora dado, por ainda Jesus não ter sido glorificado” (João 7.39); no episódio da morte de Lázaro, João informa que “Betânia distava de Jerusalém quase quinze estádios” (João 11.18); em João 12.6, ele comenta que Judas era ladrão e não se importava com os pobres.
Seguindo esse raciocínio, Hengstenberg (1802-1869), um destacado teólogo alemão do século XIX, comenta que o versículo sete é insuficiente para esclarecer tudo o que é necessário saber para compreensão do episódio. Em sua opinião, a informação de João 5.3b-4 é necessária porque é pouco provável que o mesmo narrador que acabara de informar a localização do tanque, detalhando inclusive o número de alpendres, desejasse que o leitor deduzisse a razão pela qual o paralítico queria entrar no tanque.[7]
Nessa esteira, Harris[8] observa que o fato de o versículo ser teologicamente questionável deveria favorecer a tese de uma omissão intencional, e não de uma interpolação. Ele salienta também que a concepção de que a leitura mais antiga deve ser a preferida não oferece segurança suficiente para descartar o texto.
Harris acrescenta que se o versículo quatro for extraído, o texto parece incompleto, visto que falta uma explicação para o versículo 7:[9] “O enfermo respondeu-lhe: Senhor, não tenho homem algum que, quando a água é agitada, me ponha no tanque; mas, enquanto eu vou, desce outro antes de mim.” (João 5.7). Além disso, o autor frisa que se o episódio narrado fosse uma crendice, João poderia tê-la inserido e explicado que era apenas uma lenda.
No entanto, por mais que essas observações façam sentido, os defensores do texto crítico objetam dizendo que o evangelista jamais incluiria uma explicação oriunda de superstições populares.[10] Entretanto, quem sustenta essa tese tem de lidar com a seguinte questão: Se de fato as pessoas que buscavam a cura no tanque estavam presas a crendices, por que os religiosos não aproveitaram para acusar Jesus de alimentar essa conduta? Afinal, ele curou um indivíduo no lugar em que muitos estavam presos à crença de que um anjo os curaria. Isso poderia fazer com que alguém concluísse que ele era o anjo que movia as águas. Esse argumento seria ideal para os propósitos dos saduceus e fariseus em relação ao Filho de Deus. Mas por que ninguém levantou esse ponto?
Destarte, ponderando os pontos fracos da teoria de que João 5.3b-4 seria um acréscimo posterior, Adam Clarke conclui que não há provas suficientes da inautenticidade desse texto. Ele reconhece, entretanto, que a legitimidade não diminui o desafio do intérprete. Afinal, quem se dispõe a analisar esse trecho sob a perspectiva da sua autenticidade, precisa explicar por que Deus enviara um anjo para curar pessoas naquele tanque.[11]
Por outro lado, Clarke assevera que descartar o texto, como fazem os críticos, é “a fuga desesperada de um infiel.”[12] Apesar de ser uma palavra um pouco dura, concordo com Clarke no sentido de que textos difíceis não devem ser descartados nem torcidos. O intérprete tem de lidar com os desafios interpretativos tendo em mente que a Bíblia é a Palavra de Deus, e não uma colcha de retalhos montada a fim de alinhar-se com o pensamento dos copistas.
3 – O testemunho histórico
Na reflexão acerca da legitimidade de João 5.3b-4, é preciso levar em conta que os pais da igreja não viam o relato de João como problemático. De acordo com Ambrósio de Milão (339-397 d.C.), por exemplo, o episódio ocorrera tal como narrado no versículo quatro: “todas as vezes que o anjo descia, a água se agitava.”[13]
Semelhantemente, Agostinho de Hipona (354-430 d.C.), pregando sobre esse texto, declarou o seguinte: “E quando é que se descia à piscina? Quando o anjo avisava, colocando a água em movimento […] esse lugar, de fato, era tão santo que um anjo ia até lá movimentar a água.”[14]
Esses escritos, por serem contemporâneos dos códices citados anteriormente, testificam que o versículo quatro era conhecido e considerado legítimo no século IV. Além disso, eles indicam que havia um texto ou dois que traziam esse versículo. Até porque, evidentemente, Ambrósio e Agostinho usaram textos que o continham. Entretanto, é mais provável que eles tenham usado o mesmo texto, visto que Ambrósio exerceu grande influência sobre o bispo de Hipona[15].Todavia, levando em conta a influência de Agostinho sobre a cristandade, existe grande probabilidade de que alguns de seus discípulos tenham usado o mesmo texto. Por outro lado, considerando que o Códice Alexandrino,[16] um manuscrito que contém quase a Bíblia toda, mantém a informação de que um anjo agitava as águas, e é datado aproximadamente do período em que o bispo de Hipona viveu, é razoável concluir que naquela época já circulavam manuscritos que conservavam esse trecho. Esse material certamente foi passado adiante (provavelmente pelos guardiões da tradição agostiniana). Do contrário não reapareceria em textos medievais.
João Crisóstomo (347-407) também acreditava na legitimidade de João 5.3b-4. Em um de seus sermões sobre o evangelho de João, referindo-se ao sentido da narrativa da cura do paralítico, ele destaca que “um anjo desceu e agitou a água”,[17] tornando-a um meio de cura para que os judeus aprendessem que o Senhor dos anjos poderia realizar um milagre ainda maior: a cura da alma. Similarmente, Cirilo de Alexandria (370-444 d.C.), em seu comentário do Evangelho de João, faz uma citação direta do versículo quatro do capítulo cinco.[18]
Tertuliano de Cartago (160-220 d.C.) é outro exemplo patrístico de aceitação dessa narrativa. Em sua obra De Baptismo, comentando esse texto, ele menciona que um anjo costumava agitar as águas do tanque, e que os enfermos ficavam atentos aos movimentos dele, pois quem descesse primeiro às águas depois que o anjo as agitasse era curado.[19]
À luz dessas evidências, não seria mais honesto tratar a ausência do trecho nos manuscritos ﬡ e B como omissão, em vez de apontar a presença dele em outros textos como inserção? Afinal de contas, os códices ﬡ e B, além de omitirem versículos, incluem livros apócrifos do Novo Testamento, como o Pastor Hermas e a epístola de Barnabé. A inclusão desses livros deveria, no mínimo, gerar dúvidas quanto a canonicidade do restante do conteúdo do códice.
Contudo, Gordon Fee defende que a tese da omissão não pode ser sustentada. Porquanto, em sua perspectiva, os argumentos em favor da omissão não explicam satisfatoriamente por que alguém teria omitido João 5.3b-4, tendo em vista que esse trecho lança luz sobre João 5.7.[20]
Essa argumentação, além de fazer sentido, aponta uma das dificuldades com as quais é preciso lidar para sustentar a canonicidade dessa passagem. Entretanto, é importante salientar que, da mesma forma que não se pode afirmar com exatidão histórica a razão da omissão, não é possível garantir que João 5.3b e 5.4 existiram como duas glosas[21] independentes, como defende Fee. Até porque, há muitos manuscritos do Novo Testamento e teólogos do período patrístico que tratam o registro como genuíno.
Um desses textos é o Diatessaron, uma harmonia dos evangelhos produzida no final do século II d.C. por um cristão assírio chamado Taciano.[22] Esse texto afirma que “o anjo, de vez em quando, descia ao tanque e movia a água; e o primeiro que descia depois do movimento da água, tinha todas as suas dores curadas.”[23]
O relato também aparece na Peshitta, a versão siríaca das Escrituras, desenvolvida por volta do século II d. C. Nessa tradução, as informações do versículo em questão são as mesmas das versões contemporâneas que o conservam. Senão vejamos: a Peshitta diz que “um anjo descia ao tanque de vez em quando e movia as águas, e o primeiro que descia ao tanque depois do movimento das águas, era curado de qualquer enfermidade que tivesse.”[24] Exatamente os mesmos elementos que se encontram no texto da King James e nas versões de Almeida.
Outrossim, um dos manuscritos da coleção de textos comumente denominada Vetus Latina,[25] o Codex Vercellensis,[26] que data do século IV e contém todos os evangelhos, mantém João 5.3b-4. No entanto, considerando que a Vetus Latina geralmente é datada por volta do século II d.C.,[27] é razoável concluir que esse códex reflete uma tradição mais próxima do cristianismo primitivo.
4 – Questões manuscritológicas
A evidência manuscritológica parece confirmar os argumentos supramencionados. Porquanto, como demonstra Fee,[28] existem mais de 40 escritos que ratificam a versão que mantêm João 5.3b-4 e apenas 15 não contêm esse trecho.[29] Além disso, o autor salienta que há cinco manuscritos que mantêm somente João 5.4 e sete que trazem apenas João 5.3b. Essa é a base sobre a qual Fee desenvolve a tese de que a história do anjo movimentando as águas teria sido uma glosa que circulou por meio de duas tradições independentes, uma propagando a ideia do versículo três e a outra a do versículo quatro. Ele argumenta que essas tradições teriam sido “unidas num estágio inicial no Ocidente”.[30]
Em que pese a lógica argumentativa do autor, penso que a quantidade de escritos antigos que corroboram a legitimidade do referido trecho constitui uma indicação de que esse detalhe da narrativa foi considerado importante para a maioria dos copistas. Sendo assim, sua ausência deveria ser considerada uma omissão, e não ser tratada como se refletisse o texto original. Isso nos faz voltar a uma das principais perguntas levantadas por Fee: por que alguém teria omitido esse trecho?
Apesar de ser possível desenvolver teorias acerca da motivação dos omitentes, não creio que a insatisfação dos críticos diante das respostas propostas, como sugere Fee, seja suficiente para invalidar a tese da omissão. Até porque, já que a maioria dos redatores manteve o texto, parece mais razoável crer que a versão da minoria tenha sofrido alterações, e não o contrário.
Todavia, o argumento de Fee não se limita à acusação de falta de embasamento. Ele aponta também os hápax legomenon[31] que aparecem em João 5.3b-4 como evidência de mudança de estilo redacional. Na opinião dele, o uso do grego kínēsin (movimento, agitação) no versículo 4 indica que o trecho foi escrito por outra pessoa. Sua conclusão se baseia no fato de que, conquanto a repetição de palavras seja uma marca do estilo joanino, no versículo 7 emprega-se o verbo tarássō (agitar, sacudir) para transmitir a mesma ideia de kínēsin.
Posto que essa tese tenha fundamentos filológicos relevantes, a presença de um hápax legomenon não é, por si só, um indicador de inautenticidade. Afinal, nada impede que um autor empregue uma palavra ou expressão uma única vez em seu texto. Shakespeare, por exemplo, na obra Love’s labour’s lost,[32] na primeira cena do quinto ato, utiliza a palavra honorificabilitudinitatibus, um termo inglês de origem latina que aparece uma única vez em todas as obras do escritor. Seria essa ocorrência uma indicação da interferência de outra pessoa no trabalho de Shakespeare? É óbvio que não! Ele empregou propositalmente essa palavra.
Algo similar ocorre nos textos de Geoffrey Chaucer (1343-1400), um importante escritor e poeta inglês. Em The Canterbury Tales,[33] sua obra mais popular, há pelo menos dois hápax legomenon: buf, uma interjeição onomatopaica referente ao som que alguém faz quando arrota, e nortelrye, cujo significado é educação. Será que a presença desses hápax legomenon provaria que Chaucer não redigiu o trecho em que eles se encontram? É claro que não. Ao que parece, essas palavras evidenciam apenas a criatividade do autor.
Destarte, ao invés de classificar João 5.3b-4 como espúrio, por causa dos hápax legomenon, não seria mais adequado à fé concluir que foi a inspiração divina que conduziu o escritor sacro a utilizar esses termos? Por que temos que assumir que palavras diferentes indicam autores diferentes? A presença desses termos não requer que haja inautenticidade, nem que a autoria seja posta em dúvida.
Ademais, é importante levar em conta que vários teólogos que se destacaram na história do cristianismo entenderam que o relato do anjo que vinha ao tanque era verdadeiro. Tomás de Aquino, por exemplo, comentando João 5, declara que as curas no tanque aconteciam “em virtude de um anjo que vinha a ele.”[34]
Agostinho, em seu comentário do evangelho de João, segue a mesma linha. A respeito da água agitada, ele afirma: “Acreditem: um anjo aparecia habitualmente para remexê-la e sua ação não deixava de indicar a existência de um grande mistério.”[35]
Teriam esses homens, que procuraram se aprofundar no conhecimento teológico, desconsiderado algo que fosse historicamente evidente ou que deixasse dúvidas? Não seria razoável que ao menos fizessem um comentário a respeito? Acredito que sim. Por isso, concluo que tratar o trecho como espúrio seria andar na contramão da história.
5 – Descobertas arqueológicas
Antes de prosseguir com a argumentação relativa à legitimidade de João 5.3b-4, é necessário frisar que os cristãos não creem na inspiração das Escrituras por causa das evidências arqueológicas. A certeza dos servos de Jesus vem daquele que os gerou de novo. O seu relacionamento com Ele é que lhes concede uma perspectiva diferente, de sorte que conseguem discernir bem tudo (cf. 1 Co 2.15).
Conforme afirmou o arqueólogo judeu, Yohanan Aharoni, “quando se trata da interpretação de dados históricos ou historiográficos, o arqueólogo sai do reino das ciências exatas, e tem de confiar em juízos de valor e hipóteses para chegar a um quadro histórico mais abrangente”.[36] Isto é, embora as conclusões da arqueologia se baseiem em evidências, algumas lacunas são preenchidas por interpretações objetivas e subjetivas.
É claro, no entanto, que isso não elimina a relevância desse ramo do conhecimento. Até porque, alguns achados arqueológicos ratificam informações prestadas pela Bíblia e ajudam a esclarecer textos difíceis. Porém, o indivíduo que interpreta as evidências pode falhar. Isso nos faz observar com cautela e suspeição algumas das conclusões da arqueologia. Sobretudo quando se trata de algo a respeito das Escrituras.
A afirmação de que o tanque de Bethesda era um centro de adoração pagã, é um exemplo da influência da subjetividade dos intérpretes. Pois, conquanto os arqueólogos tenham encontrado indícios de que acontecia um culto pagão naquele local, não parece haver dados suficientes para conectá-los ao exato momento histórico em que Jesus curou o paralítico. Porquanto, embora os artefatos encontrados nos arredores do tanque sejam característicos do período romano, é possível que sua inserção tenha ocorrido após o episódio narrado em João 5 e que tenha sido motivada pelos relatos de curas no local.
Ademais, se o local em que o paralítico estava era um centro de adoração pagã, como argumentam os críticos, por que João não mencionou nada? Por que os judeus, além de acusarem Jesus de profanar o sábado, não o acusaram também de paganismo? É surpreendente que os líderes religiosos que odiavam tanto Jesus não tenham aproveitado essa oportunidade.
Por conseguinte, creio que a conclusão que proporciona maior harmonia bíblica e histórica é a que vincula o paganismo de Bethesda a um momento histórico posterior ao relato de João 5. Até porque, como ambas as propostas interpretativas se baseiam em suposições, é mais seguro manter-se fiel à narrativa bíblica.
6 – Por que Deus enviaria um anjo para curar no tanque de Betesda?
É digno de nota que, à exceção de João 5, não há registro bíblico de anjos curando enfermidades. Para alguns, esse dado fortalece a argumentação contrária a legitimidade do relato. Pois, para esses intérpretes, não faria sentido o Senhor mandar um anjo para curar, sabendo que o resultado desse milagre seria uma peregrinação idólatra ao local em que as curas aconteciam.
Esse raciocínio, apesar de fazer sentido e revelar zelo pela integridade do caráter divino, não interpreta o evento a partir da narrativa maior das Escrituras. Porquanto, algo semelhante já aconteceu nas páginas do Antigo Testamento. Refiro-me à serpente de bronze que Deus mandou Moisés confeccionar a fim de curar os israelitas que haviam sido picados por cobras venenosas (cf. Nm 21.-4-9). Embora o Senhor tenha feito aquilo visando à cura do seu povo, alguns anos depois, a serpente de bronze se tornou um objeto de adoração (cf. 2 Rs 18.4).
Vale ressaltar que, de acordo com Jesus, a serpente de bronze tinha um objetivo maior: apontar para a obra redentora realizada pelo Filho de Deus (cf. Jo 3.14-15). Com base nisso, penso que é possível concluir que a movimentação das águas por um anjo visava um propósito similar: destacar que Jesus, o Redentor da humanidade, é maior que os anjos e que a criação inanimada (representada pelas águas). De modo que, quando Ele entra em cena no palco da história, a mediação angélica torna-se desnecessária.
Em adição, é importante mencionar que a Bíblia diz que os anjos são “espíritos ministradores, enviados para servir a favor daqueles que hão de herdar a salvação” (Hb 1.14) e que eles obedecem às ordens do Todo-Poderoso (Sl 103.20; 91.11). Sendo assim, se o Senhor os enviar para curar alguém eles o farão. Além do mais, se os anjos podem cegar pessoas (cf. Gn 19.1-11) é perfeitamente possível que eles possam dar vista aos cegos.
A bem da verdade, a descrença referente ao relato em questão tem suas raízes numa concepção deísta da realidade. Isto é, o ponto de partida é a crença de que as afirmações das Escrituras que contrariam a razão devem ser descartadas. Isso porque Deus dotou o homem de racionalidade para que esta fosse o crivo para definição da realidade.
Essa visão além, de levar muitos cristãos a descartarem textos bíblicos, incentiva a desconfiança das Escrituras. Porque, se a Bíblia diz que um anjo agitava as águas, mas não havia anjo nenhum, que garantia temos de que isso não acontece com outros relatos? A mutilação do texto bíblico leva inevitavelmente a esse questionamento.
Por isso, apesar de serem defendidos por exegetas de renome, acredito que os argumentos favoráveis à exclusão de João 5.3b-4 ofendem a integridade das Escrituras e induzem muitos cristãos a negarem o que está escrito e o que foi crido desde os primeiros séculos da igreja.
Conclusão
Em face dos argumentos apresentados, a legitimidade de João 5.3b-4 se torna mais aceitável. Em vez de ser visto como uma crendice, o relato assume sua verdadeira vocação: um testemunho da ação misericordiosa de Deus na história. Afinal, mesmo sem ter a obrigação de curar as pessoas, o Criador mandou um anjo para sarar doenças físicas e, em seguida, enviou o Redentor da humanidade para curar as almas.
No entanto, antes de finalizar o pensamento, é necessário fazer alguns apontamentos. Até porque, muitos podem ler esse texto e não se convencerem da veracidade do episódio. Por isso, em primeiro lugar, penso que é importante orientar os discordantes a não desconfiarem apenas de João 5.3b-4, mas duvidarem também dos argumentos de quem prega a espuriedade do texto; porquanto, como já foi dito, eles fragilizam as Escrituras.
Outrossim, cumpre observar que as alegações deste artigo exprimem uma pequena parte das premissas esposadas pelos estudiosos que se opõem ao texto crítico. Por conta disso, a fim de que o leitor possa aprofundar-se no assunto, quero recomendar o livro “Qual o texto original do Novo Testamento?”, escrito por Gilberto Pickering; uma obra bastante esclarecedora.
Por último, quero lembrar que a opção pelo texto crítico não torna alguém, necessariamente, um liberal. Existem homens piedosos que usam esse texto. Porém, apesar de sua piedade, creio que eles estão errados quando deixam que as decisões tomadas pelos indivíduos que classificaram os textos como puros e espúrios guiem sua interpretação das Escrituras. Pois, ao invés de defender e difundir as Escrituras, eles passam a enfraquecer o texto bíblico por meio da difusão do erro.
Desejo, sinceramente, que essas palavras possam levar alguns à reflexão e dissuadi-los desse erro. De maneira que não se engajem mais em pregar contra as Escrituras, mas que se empenhem para “anunciar todo o conselho de Deus” (At 20.27).
Que o Senhor nos abençoe!
Pr. Cremilson Meirelles
Colunista deste Portal
[1] A recensão crítica é uma análise que vai além do resumo de uma obra científica. Ela envolve a descrição, a avaliação da qualidade, o sentido e a relevância da obra, destacando seus pontos fortes e fracos. É uma compilação das ideias do autor, podendo incluir lacunas ou falhas de informação existentes.
[2] BRUCE, F. F. João: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1987, p. 114.
[3] HENDRIKSEN, William. O Evangelho de João. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 254.
[4] Cf. LIZORKIN-EYZENBERG, Eli. O tanque de Betesda como um centro de cura do deus greco Esculápio. Disponível em: <https://blog.israelbiblicalstudies.com/pt-br/jewish-studies/o-tanque-de-betesda-como-um-centro-de-cura-de-greco-deus-esculapio/#:~:text=O%20Tanque%20de%20Betesda%2FAscl%C3%A9pio,Ant%C3%B4nia%20(perto%20do%20tanque).>. Acesso em: 08 nov. 2024.
[5] Uma organização dedicada à preservação e compartilhamento de manuscritos do Novo Testamento para fins de pesquisa acadêmica (cf. <https://www.csntm.org/>).
[6] HARRIS, W. Hall. The Gospel of John: introduction and commentary. Richardson, TX: Biblical Studies Press, 2001.
[7] HENGSTENBERG, Ernst Wilhelm (1802-1869). Commentary on the Gospel of St. John. Edinburgh: T. & T. Clark, 1865.
[8] Idem.
[9] Idem.
[10] cf. HARRIS, 2001.
[11] Cf. CLARKE, Adam. Clarke’s Commentary: John – Romans. Niagara Falls, NY: Wesleyan Heritage Publications, 1998, p. 69.
[12] CLARKE, 1998, p. 69.
[13] MILÃO, Ambrósio de. Explicação dos símbolos; Sobre os sacramentos; Sobre os mistérios; Sobre a penitência. Coleção Patrística. São Paulo: Paulus, p. 24. E-book.
[14] AGOSTINHO, Santo. Sermão 125: a piscina de Betesda II.
[15] Cf. GONZALEZ, Justo L. Uma história do pensamento cristão, v. 2. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 21-25.
[16] De acordo com esse manuscrito, “um anjo do Senhor entrava de vez em quando no tanque e agitava a água.” (Codex Alexandrinus. E Kaine Diatheke. Novum Testamentum graece ex antiquissimo codice alexandrino. Disponível em: <https://archive.org/details/codexalexandrinu00woid/page/n5/mode/2up>. Acesso em: 26 out. 2024).
[17] CHRYSOSTOM, John. Homilies on the Gospel of John. Homily XXXVI, p. 263. Disponível em: <https://www.documentacatholicaomnia.eu/03d/0345-0407,_Iohannes_Chrysostomus,_Homilies_on_The_Gospel_Of_John,_EN.pdf>. Acesso em: 30 out. 2024.
[18] ALEXANDRIA, Cyril of. Commentary on John. Online Edition. Disponível em: <https://www.bestbiblecommentaries.com/wp-content/uploads/2019/06/Gospel-of-John-.-John-Cyril.pdf>. Acesso em: 30 out. 2024.
[19] Tertullianus – De Baptismo In: SCHAFF, Philip (1819-1893). Ante-nicene fathers v. 3. 2019. E-book. Disponível em: <https://www.documentacatholicaomnia.eu/03d/0160-0220,_Tertullianus,_De_Baptismo_ [Schaff],_EN.pdf>. Acesso em: 02 nov. 2024.
[20] Cf. FEE, Gordon. Exegese para quê? Rio de Janeiro: CPAD, 2019, p. 37.
[21] Glosa é um comentário ou uma nota explicativa sobre as palavras ou o sentido de um texto. Nesse sentido, os versículos supracitados seriam comentários incluídos posteriormente a fim de explicar a declaração de João 5.7.
[22] Essa obra foi abolida por Teodoreto, bispo de Cirro, na Síria, em 423, pelo fato de Taciano ter pertencido à seita herética dos encratitas. Contudo, a qualidade de seu trabalho foi apreciada por muitos. Inclusive, Efraim, um cristão Sírio escreveu um comentário sobre a obra de Taciano antes que Teodoreto destruísse todas as cópias. Isso fez com que parte do texto fosse preservada (GEISLER, Norman L. NIX, William. Introdução Bíblica: como a Bíblia chegou até nós. São Paulo: Editora Vida, 1997).
[23] HOGG, Hope W. The Diatessaron of Tatian In: SCHAFF, Philip (1819-1893). Ante-nicene fathers v. 9. Grand Rapids, MI: Christian Classics Ethereal Library, 1885, p. 105. Disponível em <https://ccel.org/home3/search?text=the+diatessaron+of+Tatian&genreID=&orderBy=Relevance>. Acesso em: 29 out. 2024.
[24] The New Testament translated from the Syriac Peshito version by James Murdock, Disponível em: <https://aramaicnewtestament.org/peshitta/murdock/gospel/john_5.htm>. Acesso em 02 nov. 2024.
[25] Vetus Latina é o nome dado aos textos bíblicos traduzidos para o latim antes da tradução de Jerônimo. Esse material, entretanto, nunca existiu como um único volume.
[26] Cf. Codex Vercellensis. Collectanea bíblica latina, v. 3. Romae, Neo Eboraci (etc): F. Pustet, 1914, p. 155-156. Disponível em: <https://archive.org/details/codexvercellensi0000unse>. Acesso em 31 jan. 2025.
[27] Silva destaca que os textos da Vetus Latina foram, inclusive, utilizados por Tertuliano (160-220 d.C.) (cf. SILVA, Antônio Gilberto da. A Bíblia através dos Séculos. Rio de Janeiro: CPAD, 1986).
[28] Apesar de reconhecer a existência de muitos escritos que confirmam o texto, Fee usa outros argumentos para enfraquecer a credibilidade do relato.
[29] Cf. FEE, 2019, p. 36.
[30] FEE, 2019, p. 37.
[31] Termo que se refere a uma palavra ou expressão que aparece uma única vez em um determinado texto ou contexto.
[32] Cf. SHAKESPEARE, William. Love’s labour’s lost. Disponível em: <https://shakespearenetwork.net/works/play/loveslabours>. Acesso em: 17 fev. 2025.
[33] The Canterbury Tales: text. The complete works of Geoffrey Chaucer. Edited, from numerous manuscripts by the Rev. Walter W. Skeat, M.A. Oxford: Clarendon press, 1901. Disponível em:https://www.gutenberg.org/files/22120/22120-h/22120-h.htm>. Acesso em 17 fev. 2025.
[34] AQUINO, São Tomás de. Comentário ao Evangelho de São João. Parte I: Capítulos 1-7. Disponível em: <https://isidore.co/aquinas/english/John5.htm>.
[35] AGOSTINHO, Santo. O Evangelho de São João comentado. p. 480. Disponível em: <https://archive.org/details/santo-agostinho-o-evangelho-de-sao-joao-comentado-i_202207/page/169/mode/2up>. Acesso em: 17 fev. 2025.
[36] AHARONI, Yohanan. The land of the Bible: a historical geography. Philadelphia: The Westminster Press, 1979, p. 98.