Um dos pastores da Igreja Batista da Graça de São José dos Campos/SP, Tiago Santos, em um dos seus artigos, afirma querer refletir sobre algo que parecia senso comum, mas que está agora sofrendo uma ressignificação, o respeito aos mais velhos.
“Falar sobre a geração atual é uma tarefa por vezes inglória. Alguns conceitos que seriam considerados “senso comum” estão sob suspeita, sendo ressignificados num impressionante e assustador exercício de desconstrução de ideias que a gente vê hoje.”
“Parece que vivemos um tempo em que os mais velhos representam um modo de pensar e fazer as coisas que não funciona mais em nossa sociedade (e, para nosso espanto, em algumas igrejas) e por isso é preciso se afastar deles (ou de nós). Meu assunto é breve e quero tratá-lo no contexto da fé cristã, pois minha preocupação é com o estado da igreja, quero dizer, o estado dos que professam fé em Jesus.”
De acordo com o pastor Tiago Santos, uma enorme parcela de jovens da badalada geração “Z”, isto é, pessoas nascidas a partir de 1995 até agora, comanda uma patrulha implacável a tudo que se coloca no caminho da nova ética que o tal movimento “woke” estabeleceu como norma pétrea da sociedade. Esta nova ética é abrangente e incorpora praticamente todas as ideias que surgiram a partir das narrativas progressistas dos últimos 25 anos que dão novos parâmetros sobre o que significa viver bem em sociedade.
Cultura do cancelamento
A escalada de valores foi muito rápida, e, parece, depois da pandemia de 2020, passou a ser implementada de modo ainda mais agressivo. De áreas ligadas ao meio ambiente a questões complexas da medicina, das ciências, da política, da sexualidade, da psicologia e da religião, enfim, para tudo há uma nova norma que não aceita discussão. A sua imposição chega a ser violenta, seja pela cultura do cancelamento, muito forte no ambiente da imprensa e das redes sociais ou, ainda mais perigoso, como a gente vê nos governos do ocidente, pela criação de novas leis e jurisprudências que criminalizam a opinião e discussão de ideias. Pensar dum jeito antigo em pleno 2023 pode ser muito perigoso e até dar cadeia.
É curioso, no entanto, que o método desta nova ética se dê pela fragmentação da verdade, pelo fim do senso comum e pelo emprego de narrativas quebradas e desconexas de uma metanarrativa, em favor de um amplo pluralismo. Isto tem sido chamado de pós-verdade e significa que cada pessoa ou grupo social tem sua própria verdade e valores, os quais não podem ser jamais questionados.
É muito espantoso verificar que essa tendência alcançou também a igreja cristã. Muitos no meio do povo de Deus são fortemente influenciados por essa nova ética da pós-verdade e passam a confundir a ética cristã com as novas (e sufocantes) ideias que regulam a vida da sociedade ocidental neste século 21. Isto é forte nos EUA e Europa e chega com grande intensidade também ao Brasil, especialmente nos grandes centros urbanos, no meio universitário e nas redes sociais da internet.
Os mais velhos estão sendo cancelados em toda parte e isso acontece também na igreja. Por isso, vou primeiro trazer o princípio bíblico.
Quinto mandamento
O quinto mandamento do decálogo, escrito pela própria mão de Deus (e pronunciado diante de toda comunidade redimida) diz: “Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor, teu Deus, te dá”.
Neste mandamento, o povo de Deus é exortado a amar e obedecer aos pais. Um primeiro e importante elemento que deve ser destacado é que o mandamento não se dirige a crianças apenas, mas a todos quantos têm pais vivos (Pv 19.26; 23.22). Este mandamento, em distinção da maioria dos mandamentos do decálogo, é formulado em termos positivos e, ainda mais, é vinculado a uma promessa. Essa promessa tem à ver com efeitos da obediência. Como vemos nos textos de sabedoria da Bíblia, seguir bons conselhos de nossos pais, ouvir e respeitar os mais velhos, viver em paz com todos os homens, lidar respeitosamente com as autoridades, são atitudes que normalmente prolongarão os dias da pessoa e tornarão a vida mais fácil. Acrescente a isto o fato de que Deus mesmo promete abençoar aqueles que buscam cumprir o quinto mandamento e preservar seu espírito.
A expressão “honra” vem do hebraico kabod e tem um sentido de peso, importância, glória, prestígio. Trata-se do respeito que um inferior oferece a um superior. O Catecismo Maior de Westminster, na questão 126, propõe que o alcance do quinto mandamento é “o cumprimento dos deveres que mutuamente temos de uns para com os outros nas nossas diversas relações como inferiores, superiores ou iguais”.
Os reformadores foram além e até expandiram a compreensão deste mandamento a todos quantos têm posição de autoridade em relação a nós — primariamente e imediatamente nossos pais, mas também os idosos, o magistrado, educadores e pais espirituais. O reformador francês João Calvino, ao comentar sobre o quinto mandamento, destacou três expressões de honra — “reverência, obediência e reconhecimento” — e demonstra como o princípio de honra aos pais pode se estender a todos os pais: magistrados, anciãos, pais na fé, pedagogos. Em sua elaboração, Calvino condicionará essa obediência à obediência “no Senhor” (Ef 6.1).
Um ponto muito importante do mandamento é que a honra, o respeito e a consideração começam no coração. A reverência aos pais e às demais figuras de autoridade deve ser reflexo e evidência de nossa honra e reverência a Deus, em primeiro lugar.
Então, somos chamados a honrar nossos pais. Isso inclui nossos pais na fé. Inclui homens e mulheres de Deus que carregam nos ombros arqueados e na cabeça branca os anos de experiência e vida que acumularam.
Lemos ainda em Levítico 19.32: “Diante das cãs te levantarás, e honrarás a presença do ancião, e temerás o teu Deus. Eu sou o Senhor”. E textos como Provérbios 16.31 e 20.29 reforçam o ensino das Escrituras que os mais velhos devem ser honrados. Este princípio está aí porque normalmente os mais velhos estão associadas à experiência, à sabedoria, ao acúmulo de conhecimento, à desilusão e ao realismo. Na Bíblia, o ancião é tratado como um reservatório da tradição, da história das famílias, como o arquivo vivo de uma sociedade que vive por meio da tradição oral. Os velhos são mestres e ensinadores no meio do povo.
A influência da fé cristã no mundo antigo cumpriu o bom papel de levar este princípio de vida adiante. As sociedades que preservam o valor de respeitar seus idosos costumam ser prósperas e muito bem organizadas.
Movimento antivelho
Mas percebo com preocupação um certo movimento antivelho em nossos dias, e nossos arraiais evangélicos não estão imunes a esta atitude, pelo contrário. O afã para afastar os mais experientes do centro das ideias e das discussões está mais e mais forte. A internet é o espaço onde isso se manifesta com maior força (talvez porque lá os grupos que agem assim se retroalimentam). Tal atitude é às vezes velada, às vezes explícita; às vezes despercebida, outras, intencional; mas é real.
Uma autocrítica que possamos considerar para a geração mais antiga é que tem-nos faltado habilidade para falarmos a esta geração mais jovem, chegarmos neles com paciência e graça e os alcançarmos no lugar e condição em que estão. Mas isto é outro assunto.
O ponto é que tenho visto muitos jovens e outros não tão jovens assim – mas muito sintonizados com essa nova abordagem, buscando seu lugar de fala, seu papel no ensino e seu desejo de mostrar que têm uma voz, uma opinião, uma ideia que precisa prevalecer, que são sensíveis às novas causas e demandas que a sociedade coloca diante da igreja e que podem contribuir; mas há um problema: os velhos pastores, teólogos e professores que têm posição distinta ainda estão vivos ou, aqueles que já morreram, ainda exercem uma influência incômoda. Precisam ser silenciados. Sinto nessa atitude algo semelhante ao jovem que pediu ao seu pai ainda vivo “sua parte na herança” (Lc 15.12).
Além disto, é preciso dizer que muitos desses que buscam ocupar os espaços dos velhos ainda não têm, eles mesmos, muita trajetória de vida, muito chão de igreja e muito o que oferecer, senão sua opinião e suas reclamações. As críticas, aliás, mormente chegam com o peso de uma bigorna e suscitam comentários de aprovação, mas é tudo muito ácido e muito virtual, com pouco ou nenhum fruto.
Os antigos, em particular pastores e líderes de destaque e que por décadas exerceram grande influência no pensamento cristão, na produção literária, na plantação de igrejas, na obra missionária, na fundação de escolas e editoras cristãs, no lançamento de fundamentos importantes da teologia para nossos dias, enfim, estão sendo agora medidos e avaliados por um grupo muito exigente de pessoas que mira seus canhões da internet em tudo que fizeram.
Alguns colegas de minha geração ou da geração anterior à minha que estão ainda na labuta já foram cancelados várias vezes (eu mesmo que sou uma pessoa que trabalha mais nos bastidores já tive minha quota de cancelamento).
Não é raro, todavia, que essa postura dura e críticas para com os anciãos, geradas no ambiente superficial e pesado das redes sociais, tenham sua origem em pessoas que possivelmente jamais tiveram a oportunidade de trocar uma única palavra com seus alvos (os quais se tornam slogans ou uma ideia), nunca visitaram seus lares, não estiveram em suas igrejas ou conversaram com membros de suas igrejas e que raramente leram mais do que algumas linhas de seus escritos (provavelmente apenas os excertos que foram parar na internet) e, pior, chegam indistintamente nas pessoas, inclusive muitos neófitos, que no fim reproduzirão este procedimento, num loop sem fim, tornando tudo muito público, muito feio.
Honra e gratidão
A Escritura nos exorta a ser gratos pelos dons dele na vida da igreja e a reconhecer os benefícios da graça na vida daqueles que palmilharam caminhos difíceis e quebraram pedras mais duras que as nossas. Nossos anciãos na igreja são nossos pais na fé e merecedores de nossa honra, de levantarmos ante seus cabelos brancos.
Muitos de nossos velhos têm suas lutas, é verdade, têm seus pontos cegos, suas áreas de fracasso, suas contradições. Mas a realidade é que todos nós as temos. Afinal, estamos todos ainda do lado de fora do Éden. Nossos santos, assim como nós, têm pés de barro. Nossos velhos podem ter cometido erros em sua trajetória, em algumas de suas ênfases e até em certas omissões, mas o que fazemos é cobrir a sua nudez (Gn 9.23) e não expô-la ao espetáculo público, ao cancelamento e à chacota.
Uma coisa é combater a heresia, os falsos mestres, os charlatões da fé, os vendilhões do templo, os enganadores, os impostores — e estes estão aí, fazendo muito estrago. Outra é expor ao vitupério público e ao tribunal das redes sociais homens de Deus que porventura tenham falhado em algum ponto de seu ministério. E mesmo essa aferição das falhas ministeriais precisa de um juízo muito honesto e criterioso, o qual idealmente deveria acontecer no contexto pactual da comunidade local, e jamais nos poucos caracteres das redes sociais.
Somos todos chamados a honrar os cabelos brancos, a ser gratos pelos dons de Deus para a igreja e a sentar aos pés de nossos velhos com reverência, respeito e deferência, como pais na fé que são. Isso ensinará também aos nossos filhos, ensinará nossas igrejas, ensinará a sociedade fora da igreja como a gente lida com as coisas: com o princípio da graça, do respeito, do perdão, da redenção e da piedade. Se essas virtudes não guiarem nosso zelo, tudo o que teremos a oferecer será ressentimento, amargura, vaidades e muita justiça própria.
Fazemos bem em lembrar que Deus também é referenciado na Palavra como “Ancião de Dias” (Dn 7.9) e sua sabedoria é muito mais decana que as de todos nós juntos.