É possível ser cristão longe das instituições religiosas?
É inegável o crescimento da Igreja evangélica no Brasil nos últimos anos. Ao mesmo tempo, também avança o número de crentes que se desvinculam das estruturas denominacionais e vão viver a fé de forma diferente, fora do sistema e de tudo que ele representa. Há quem os chame de “desigrejados”, “crentes reconfigurados” ou “Igreja orgânica”. Mas seria possível ter uma vida cristã saudável fora dos templos religiosos?
Em 2011, quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os números da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) realizada nos anos de 2008 e 2009, um dado chamou a atenção de lideranças religiosas: num intervalo de seis anos (de 2003 a 2009) cresceu de 0,7% para 2,9% o grupo de evangélicos sem vínculo com uma instituição religiosa. Em números absolutos, um aumento de aproximadamente 4 milhões de pessoas.
À época, os pesquisadores chamaram esse público de “evangélicos não praticantes”, por não estarem ligados à vida e à rotina de uma denominação. Não houve uma diferenciação entre os que abandonaram as práticas cristãs dos que as mantinham, porém, fora dos templos.
Embora não haja estatísticas oficiais atuais, lideranças constatam que é grande e ascendente a quantidade de evangélicos que, insatisfeitos com o sistema institucional religioso – citam a rigidez das formalidades, modelo em que poucos participam, casos de escândalos, hipocrisia e falta de transparência, uso indevido das finanças, relacionamentos frios e impessoais, entre outros motivos –, migram para uma nova forma de viver a fé cristã: em reuniões nos lares, com grupos pequenos, sem ritos e formalidades, com muita ênfase na comunhão e na participação de todos.
Crise institucional
Para o pastor da Assembleia de Deus e professor de Teologia da Missão da Faculdade Unida, em Vitória, David Mesquiati, esse movimento já se tornou comum. “Não tenho números, mas por observação tenho visto isso acontecer. A pessoa diz que é cristã, mas que não tem uma filiação religiosa formal, que não faz parte de nenhuma denominação. Não são pessoas que abandonaram o cristianismo.
O perfil é outro. São pessoas maduras na fé que estão saindo das fileiras das igrejas e fazem isso por convicção, como crítica às instituições eclesiais. A sociedade está passando por uma grande mudança, e as igrejas estão sendo questionadas”, afirmou.
Mesquiati enfatiza, contudo, que esse movimento não deve ser entendido como uma secularização da fé. “As pessoas estão buscando alternativas para viver a fé. Nunca vivemos, aqui na América Latina, um processo de secularização. Isso aconteceu em setores muito específicos na Europa e dos Estados Unidos. A população daqui é, de um modo geral, muito religiosa”, explica.
O fenômeno também foi percebido pelo pastor Andrielly Thompson. Auxiliar na Primeira Igreja Batista de Jardim Camburi, em Vitória, ele diz que tem sido recorrente o uso do mesmo “discurso”. “Vamos sentindo falta de algumas pessoas e, quando procuramos saber, nos deparamos com esse discurso de que está muito bem com Deus, de que não precisa da igreja, nem de participar do culto. Ouço isso constantemente”, afirma.
Ele admite que a crise institucional que atinge o país não deixa de fora a Igreja. “Não só a Igreja mas também outras instituições como a família, a escola, o Estado, a política, tudo está sendo colocado em xeque”, avaliou.
Em busca das raízes
Na internet, é possível encontrar páginas em redes sociais e descrições sobre a chamada “Igreja orgânica”. O termo ficou popularmente conhecido após a publicação do livro “Igreja Orgânica: plantando a fé onde a vida acontece”, de Neil Cole, em 2007. Nele, o autor demonstra como semear o Reino de Deus em lugares onde a cultura é formada, como restaurantes, bares, locais de trabalho, parques, vizinhança, etc, levando a Palavra onde as pessoas estão, em vez de esperar que elas apareçam no templo. É uma tentativa de voltar às raízes da Igreja primitiva.
Trata-se de evangélicos que se identificam com as doutrinas fundamentais da fé cristã, mas não acreditam na necessidade e relevância das igrejas institucionais. Tendo em vista o caráter descentralizador, o movimento também recebe outros nomes como: “Igreja nos lares”, “Igreja doméstica”, “Igreja não denominacional”, “igrejas da cidade”.
Já faz algum tempo que o pesquisador e doutor em Ciência da Religião Marcos Simas estudou os fenômenos religiosos, e este não passou despercebido. “Minha pesquisa de doutorado foi sobre o que está por trás da mente daquela pessoa que não vai mais à igreja, mas tem um contato virtual e digital com a religião e se sente religioso, pela internet. É algo muito complexo. Há uma alteração do eixo de pensamento; mudaram o temor e a dependência da religião e de todos os seus rituais e liturgias”, analisa.
O pesquisador complementa o fato afirmando que não é obra do diabo. “A religião institucionalizada não dá mais elementos para segurar essa pessoa, é o que Zygmunt Bauman (sociólogo e filósofo polonês falecido em janeiro deste ano) dizia da sociedade líquida. Isso é resultado da mentalidade social mais ampla. Não é obra do diabo, é obra de uma sociedade que está alterando sua forma de pensar”, observou.
Para o presidente da Associação dos Pastores Evangélicos da Grande Vitória (ES), Pr. Enoque de Castro, há uma busca, por parte desses grupos, de se restabelecer os três pilares da reforma protestante. “Quando Lutero implantou os três pilares, a Igreja aceitou bem a salvação pela fé sem o pagamento de indulgências e o livre exame das Escrituras, com a impressão de Bíblias nos idiomas locais. Mas se perdeu na questão do sacerdócio universal que está em 1 Pedro, capítulo 2, versos 9 e 10“, cita.
Segundo o pastor, a metodologia da Igreja continuou na visão clerical “em que só quem faz parte do clero pode falar, pregar… Isso é um grande nó que se arrasta desde a reforma. Há, por isso, uma febre no Brasil de grupos que não querem mais estar no meio dessas denominações, que são mais de 200 só em Vitória (ES), por entenderem que muitas se desviaram”, analisou.
Na simplicidade do Evangelho
A tecnologia e a internet ajudam na expansão desse contingente. Mas, antes que tais adventos se tornassem tão acessíveis, o comerciante Fernando Pereira, morador de Jacaraípe, Serra (ES), já havia feito sua escolha. Em 1993, optou por não mais fazer parte do rol de membros de uma denominação e assim vive com a mulher e seus três filhos até hoje. Na época, então com 21 anos, ele já tinha passado por duas denominações, quando teve uma experiência que marcou a sua vida.
“Eu me preparava para casar quando viajei para Salvador, na Bahia, e encontrei um grupo de pessoas que se reunia em praças, casas, parques. Fiquei hospedado 30 dias na casa de uma dessas famílias e fui impactado pela acolhida e pela simplicidade com que esses irmãos viviam o Evangelho. Todos tinham o mesmo comportamento, desde a criança de 5 anos até o senhor de 60″, conta Pereira.
O comerciante diz que notou como os líderes se portavam. “Não havia diferença com os outros, todos eram iguais na simplicidade, e havia fervor no compartilhar e pregar o Evangelho. No auge da minha euforia, pensei: a Igreja primitiva existe! Eu queria viver aquilo. Então, quando voltei, falei com minha noiva, que fazia seminário teológico. Ela quase me deixou achando que eu estivesse no caminho herético. Mas depois a noiva entendeu. Nós nos casamos e nos mudamos para Belo Horizonte, onde lá começamos a congregar com um grupo parecido ao que eu tinha conhecido em Salvador”, completa.
Fernando conta que no começo enfrentou resistências, tanto de familiares, como de si mesmo. “No começo, foi difícil ficar em casa no domingo de manhã, porque fomos doutrinados a estar na escola bíblica dominical. Parecia um peso, uma culpa. Mas daí passamos a compreender que a nossa vida em Cristo era o tempo todo, em todas as áreas. Muitos tentaram nos persuadir, mas o que nos dava tranquilidade e segurança era que estávamos desfrutando de uma comunhão genuína com Deus e com os irmãos, coisas que não tínhamos antes devido à carga de compromissos e atividades para manter o templo e a estrutura”.
Além do convívio mais intenso com outros da família de Cristo, Fernando relata que a forma de evangelização também é outra. “Antes a estratégia era chamar a pessoa e levá-la para o templo, para que lá ela ouvisse a pregação e se convertesse. Mas Jesus anunciava o Evangelho e trazia a pessoa para perto de si, para ensinar a partir do exemplo. É caminhando com o irmão no dia a dia, no convívio da sua casa, que ele vai aprendendo sobre Cristo”, comenta.
Fernando interpreta alguns pontos do Cristianismo de forma diferente que a maioria das denominações evangélicas, como por exemplo, a guarda do domingo e o dízimo. “Entendo que devemos guardar todos os dias e não só o domingo para o Senhor. É no trabalho, na escola, em casa, com os vizinhos e não só no templo. Já com relação ao dízimo, a mesma lei que ordena o dízimo também ordena o apedrejamento do adúltero. Se o contexto da lei de Moisés é o mesmo, então por que nos dias atuais se pratica uma lei e não a outra? Todo o Novo Testamento fala sobre generosidade, liberalidade”, contesta.
O comerciante defende que Deus não quer nada imposto, “mas sim que a contribuição parta de um coração alegre, generoso, voluntário, aberto para ouvir o Espírito Santo decidir sobre os 100% do seu ganho, e não apenas dos 10%. Porque tudo é de Deus. O que acontece também é que hoje a maior parte dos dízimos vai para a manutenção dos templos, e pouco vai para as necessidades dos órfãos e das viúvas, como era na igreja primitiva”, compara.
Na sua casa, há períodos de oração, de leitura da Palavra, de ensino, de comunhão com os amigos e irmãos na fé. Mas ele sabe que a “liberdade” de se viver um Evangelho mais simples também traz muitas responsabilidades e desafios. “É um desafio viver dessa forma. É algo semelhante a Abraão, que largou tudo e foi vivendo um dia de cada vez. Nossa carne se sente mais confortável com pessoas conduzindo a nossa fé em vez de buscar a Deus até se sentir seguro. Deus chamou todo o povo para estar diante dEle, e o ambiente familiar é a grande célula da vida cristã”, ressalta.
“A responsabilidade de dar instrução aos filhos é nossa, e não da escola ou dos pastores. Não é levá-los para homens e mulheres de Deus, nós precisamos ser os homens e mulheres de Deus dos nossos filhos e da nossa família. Deus precisa nos preencher de tal forma que Ele seja o nosso tudo”, finaliza Fernando.
Um chamado à reflexão
Embora crescente, o movimento não ameaça a existência dos templos religiosos, por não se tratar de uma mobilização concorrente. Porém, na opinião de algumas lideranças, é necessária uma reformulação para que as denominações tenham papel relevante na espiritualidade da sociedade daqui por diante.
“As estruturas eclesiais vão ter de se adequar. Nos grandes centros urbanos, por exemplo, onde o metro quadrado é cada vez mais caro, com leis que pedem estacionamento, com o horário de trabalho dos membros da igreja cada vez mais dinâmico, manter um templo é muito caro. A ideia do templo como lugar para congregar pessoas terá de ser reinventada, com formas mais descentralizadas para reunir as pessoas. As igrejas precisam se tornar relevantes, além dos templos”, afirmou o professor Mesquiati, que já tem feito isso.
Pastor da Assembleia de Deus, ele percebeu esse movimento de pessoas deixando a instituição e decidiu iniciar um grupo de oração e de estudos bíblicos nos lares. “Começamos esse grupo com essas pessoas que deixaram a denominação, mas não queriam abandonar a fé. São cerca de 20 participantes. É como uma célula. Vejo esses grupos como positivos, que, no médio prazo, vão forçar a Igreja a repensar sua postura. Sou pastor da Assembleia de Deus e vou continuar lá porque não quero deixar de ser um interlocutor para que as mudanças ocorram. Não há mais lógica, em pleno século 21, a pessoa defender placa denominacional. Isso é estupidez. Se tem algo para se defender, que seja o Evangelho”, afirmou.
Há também uma preocupação sobre o crescimento e o futuro desses grupos. “Não há nada de errado com eles, são uma reconfiguração de se viver o cristianismo. Muitos são cristãos mais autênticos do que os que vão às igrejas semanalmente. Mas é preciso ter cuidado com duas coisas: individualização e superficialidade, que podem, com o tempo, fazer parte desses novos grupos, uma vez que não há uma relação de compromisso institucionalizada. O que tem aparecido também é a existência de evangélicos nominais, e isso preocupa. E a história nos conta que muitos movimentos começaram dessa forma, descentralizados, e viraram instituições. O ser humano tem a tendência de materializar tudo”.
O pastor Andrielly faz coro. Ele acredita ser inevitável que os grupos, ao crescerem, tornem-se também uma instituição. “A família é uma instituição, assim como a Igreja. Ainda que se queira fugir da estrutura física, há um líder, uma institucionalização. Quando Jesus fala da necessidade de se colocar vinhos novos em odres novos, vejo-o falando de uma estrutura para suportar o vinho. Sempre haverá uma estrutura, e o que temos de discernir é: qual a de que precisamos, neste tempo, para suportar a fé e a espiritualidade, para promover o Reino de Deus em favor das vidas. Acho que a questão não é acabar com a estrutura da igreja, mas como transformá-la e torná-la relevante para os dias atuais”.
Andrielly também cita sua igreja como exemplo de uma instituição relevante na comunidade em que está inserida. “O templo não funciona só aos domingos. Ele está aberto diariamente à disposição da sociedade, com cursos, campanhas de vacinação, eventos no bairro, atendimentos a quem precisar. Em setembro, quando todos os órgãos públicos discutiram sobre a questão do suicídio, nós fizemos programações sobre o tema também”, alega.
Mas ele também vê os grupos pequenos com bons olhos. “Coordeno uma rede de 110 células da igreja e acredito que a célula é uma forma de se diminuir o impacto da formalidade da instituição. Se daqui pra frente o Brasil passar a ser um país fechado para o Evangelho, com as células, a Igreja não morre”, complementa Thompson.
O que os pastores e os participantes dos grupos dos “desigrejados” são unânimes em afirmar é que, dentro ou fora de um templo, congregar e estar em comunhão com os irmãos da fé é inerente à vida cristã. Crer e não partilhar a vida com outras pessoas, não exercitar o amor, o perdão e a compaixão, não anunciar as boas-novas e não ter um coração aprendiz, pronto para ouvir e obedecer, de nada vale. O cristianismo não é nem nunca será uma religião solitária, uma vez que o próprio Cristo deu a vida para restabelecer o relacionamento do homem com Deus e com seus irmãos.
Fonte: Revista Comunhão