A tese de que em toda a Bíblia há diretrizes missionárias é o pressuposto dessa série de textos sobre missões. Com base nisso, procuraremos demonstrar que, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, o texto bíblico incentiva a multiplicação da fé.
Outrossim, como sugere o título deste artigo, defenderemos que propósitos missionários guiavam as ações divinas anteriores à queda. A fim de comprovar isso, apontaremos os trechos da narrativa da Criação em que o viés missionário é mais evidente.
Em Gênesis 1, por exemplo, vemos no governo abrangente de Deus a indicação de que Ele não é o Senhor de uma nação apenas, mas de toda a Criação. Similarmente, ao criar o homem à Sua imagem e firmar uma aliança com ele, o Altíssimo mostra que sua intenção relacional nunca se limitou a uma única etnia. Desde o princípio, Ele queria se relacionar com gente de toda tribo, língua e nação.
Ao ordenar o enchimento da terra, a finalidade missionária fica patente, visto que a ordem foi dada antes da queda. Ora, se o primeiro homem e sua mulher começassem a cumprir imediatamente essa ordem, a terra seria cheia de indivíduos que, por não estarem corrompidos pelo pecado, conservariam a retidão original e seriam naturalmente inclinados a adorar o Criador. Logo, a terra se encheria de adoradores. Dessa forma, o propósito da Criação seria alcançado, qual seja, a adoração.
Ademais, em Gênesis 2 e 3, há indícios de que o Éden, na perspectiva divina, era como se fosse um santuário, no qual Adão deveria atuar como sacerdote. Senão vejamos: a direção em que o jardim foi plantado, o Oriente (Gn 2.8), é a mesma do tabernáculo (Nm 3.38) e do templo (Ez 8.16); a presença de ouro e pedras preciosas (Gn 2.11,12; Ez 28.13) podem ser indicações do papel sacerdotal de Adão (Êx 25.7); o fato de que a vegetação edênica (Gn 2.16) e os querubins (Gn 3.24) foram representados no templo de Salomão, através do candelabro, das árvores e dos querubins esculpidos nas paredes (1Rs 6.18,29) também aponta nessa direção. Além disso, em Gênesis 2.15, usa-se os termos cultivar (abad) e guardar (shamar), os quais geralmente aparecem juntos em contextos de serviço sacerdotal (Nm 3.7; 8.24-25; 18.5-6; 1Cr 23.32).
Essas similaridades somadas ao comissionamento de “encher a terra” (Gn 1.28) constituem a base argumentativa para a ideia de que o objetivo divino sempre foi a expansão do Seu templo (o Éden) por toda a Criação. De modo que Adão, o sacerdote real, deveria, por meio da multiplicação, transformar cada canto do planeta num santuário de adoração ao Senhor.
A queda não alterou esse objetivo. O que mudou foi o modus operandi; haja vista que, enquanto a missão pré-queda deveria ser cumprida pela geração (Gn 1.28) e o consequente envio dos filhos por meio do casamento (Gn 2.24), bem como pelo domínio e sujeição da Criação; após a queda a missão é realizada por meio da proclamação. Isto é, agora busca-se o perdido a fim de torná-lo um adorador. Mas, o propósito continua sendo a adoração.
O objetivo da geração de filhos sempre foi a multiplicação da adoração. Com a queda, entretanto, a procriação por si só não garante mais a geração de adoradores. Agora, os adoradores nascem pela obra do Espírito Santo, através da pregação do evangelho. Mas, como isso começou? É o que veremos neste texto.
1 – Deus apresentou Cristo como a solução para o problema
Em Gênesis 3, antes do anúncio do juízo divino, uma excelente notícia foi proclamada: apesar da desobediência humana, Deus providenciara uma solução para o problema do pecado. Isso foi registrado em Gênesis 3.15, texto que passou a ser conhecido na teologia cristã como o protoevangelho, haja vista que constitui prenúncio da obra redentora de Jesus Cristo. Eis o que diz o texto: “…porei inimizade entre ti e a mulher e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.”
Vale ressaltar que as circunstâncias em que essa declaração foi proferida reforçam verdades fundamentais para a missão. A primeira delas é a universalidade do pecado e da oferta de salvação, pois o fato de a mensagem ter sido dirigida a Adão, o representante da humanidade naquela ocasião, deixa claro que a redenção visava alcançar pessoas de todo canto da terra.
Ademais, o anúncio de que a concretização da promessa viria por intermédio da procriação mostra que a meta original (multiplicação da adoração por meio da geração de filhos) ainda estava em vigor. Porém, seu cumprimento se daria por meio do nascimento de um único filho, o Filho de Deus, o qual daria origem a uma multidão de adoradores.
Mas, antes que isso acontecesse no palco da história, seria necessário estabelecer uma árvore genealógica que culminasse no advento do Messias. O uso do hebraico zera‛ (semente) no enunciado da promessa parece indicar isso, haja vista que se trata de um termo frequentemente usado com referência à linhagem escolhida.
A importância da descendência física, no entanto, ficou restrita ao seu propósito original: servir de veículo para a encarnação do Verbo. Após alcançar esse fim, a ênfase recaiu sobre a descendência espiritual. Isto é, embora na Antiga Aliança a expectativa messiânica motivasse a geração de filhos, o que predomina na Nova é o desejo de participar da geração de discípulos de Jesus Cristo. Porquanto, os filhos de Deus por adoção são gerados pela obra do Espírito Santo.
2 – Deus estabeleceu a proclamação como estratégia missionária
Como a geração de filhos se tornou insuficiente para o cumprimento da missão de multiplicar a adoração no mundo, Deus levantou homens para divulgarem a promessa redentora do Criador. Entre eles, destacaram-se Enoque e Noé, os quais estão entre os primeiros missionários. Sua pregação era marcada pela proclamação universal da necessidade de justiça (2 Pedro 2.5; Judas 14-16). O cerne da mensagem era a oferta de salvação mediante o arrependimento. Isso pode ser depreendido do fato de eles andarem com Deus (Gn 5.24; 6.9) e apregoarem o juízo. Ou seja, diante do castigo iminente, os ouvintes deveriam retroceder de seus maus caminhos e, como eles, se aproximar de Deus.
Esse discurso, por ter ocorrido antes da separação dos povos em Babel, era evidentemente dirigido a toda humanidade, tal como é ordenado no Novo Testamento: “E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura.” (Mc 16.15).
Além desse ponto de contato com a missão neotestamentária, é importante destacar o alinhamento entre a conduta daqueles homens e sua pregação. Afinal, o comportamento desalinhado com a pregação pode comprometer a evangelização. A missão requer que o missionário seja um adorador. Até porque, seu objetivo é multiplicar a adoração no mundo.
3 – A diversidade cultural
Para o cumprimento da promessa protoevangélica, Deus prometeu a Sem, filho de Noé, que habitaria em suas tendas (Gn 9.27). Essa promessa indica que a linhagem escolhida viria dos semitas. Isso foi confirmado quando o Senhor se revelou a Abraão, um dos descendentes do filho de Noé (cf. Gn 11.1-26).
Em Babel, porém, a rebelião humana levou os povos a se oporem a esse aspecto da missão, por meio da autoexaltação e da homogeneização cultural. Isto é, eles buscaram exatamente o oposto do que Deus ordenara. Ao invés de se espalharem pela terra, a fim de enchê-la de adoradores (Gn 1.28), decidiram permanecer todos na mesma região e buscaram exaltar as criaturas (Gn 11.4), e não o Criador (Rm 1.24-25).
Em resposta, Deus interveio promovendo a diversidade através do espalhamento dos povos (Gn 11.5-9). Com isso, além de manifestar o juízo sobre “a injustiça dos homens que detêm a verdade em injustiça” (Rm 1.18), o Todo-Poderoso mostrou que a diversidade cultural se enquadra no seu propósito de multiplicar a adoração no mundo. Os missionários, portanto, devem considerá-la antes de se lançarem no campo.
Conclusão
A presença desses princípios nas páginas do Antigo Testamento evidencia a unidade da revelação. Afinal, ambos os testamentos foram progressivamente revelados pelo mesmo Deus, de sorte que o mesmo caráter está presente em cada livro. Sendo assim, é natural que os propósitos se mantenham. Aquilo que o Criador intentou no começo foi o que ele realizou no decorrer da história da redenção.
Por conseguinte, o missionário deve se alicerçar nos princípios revelados por Deus e confiar no poder do Espírito Santo para levante avante a missão.
Pr. Cremilson Meirelles