Depósito é um local em que guardamos ou amontoamos objetos. Igreja é um fértil ambiente para que vidas possam ser nutridas e enviadas ao mundo para espalhar a vida do reino de Deus, por palavras e obras transformadas. Mas poderá ser um depósito de gente quando transformamos um templo na própria igreja, espaço que acabou deslocando o sentido em que deixamos de ser igreja para “irmos à igreja”.
A igreja será um depósito de gente quando transformamos o domingo, dia de celebração e descanso em dia de cansaço e agitação, quando ovelhas são transformadas em mão de obra útil para realização de planos “ocupacionistas” de uma liderança que as transforma em recursos humanos, em vez de considera-las como humanos com recursos provenientes de seus dons dados por Deus.
A igreja vira depósito de gente quando confundimos entretenimento com culto, ajuntamento com comunhão, louvor com show gospel; quando o culto deixa de ser instrumento de adoração para ser momento artístico; quando transformamos o culto em meio de graça, em uma espécie de “missa gospel” que serve para aplacar a dor de consciência ou mero ritual religioso em busca de favores divinos, em vez da adoração ser fruto do reconhecimento diário da soberania de Deus nas escolhas diárias. Afinal o culto é para nosso bem-estar ou para a satisfação de Deus?
Como ser igreja hoje diante de tanta pressão pelo individualismo, pelo desconhecimento do que seja de fato a verdade bíblica para sua nutrição?
Também será depósito de gente quando seus membros são mera mão de obra e de manipulação de poder, especialmente quando nós pastores usamos as pessoas para que nos sirvam cegamente em tudo. Ou quando nos valemos equivocadamente como “ungidos do Senhor” cegando o senso avaliativo das ovelhas ao colocarem em risco o senso de “infalibilidade pastoral”.
As pessoas vivem empilhadas no tempo, como em um depósito, quando uma igreja for apenas guiada por eventos, ativismo e programas em vez de ser igreja viva, dinâmica, atuante neste mundo como “sal e luz” (Mt 5.13ss). Será depósito de gente uma igreja que vive desenfreadamente com muito movimento, mas pouco deslocamento em direção da missão de Deus em transformar e recuperar este mundo.
Enfim, a igreja será depósito de gente quando valoriza a competição em vez do companheirismo, do compartilhamento, da solidariedade. Será depósito de gente quando o púlpito se torna o único meio de divulgação e ensino da Bíblia, sem a priorização na educação religiosa no aconselhamento, na visitação e estimulo à comunhão diária, que vão promover o fortalecimento de vidas, e não apenas transmissão de informações conceituais sobre o Evangelho.
Como ser igreja hoje diante de tanta pressão pelo individualismo, pelo desconhecimento do que seja de fato a verdade bíblica para sua nutrição? Como ser igreja em que as pessoas são gente não apenas salva por Jesus, mas também portadoras de vida transformada e transformadora? Como ser igreja fora do templo? Como ser igreja no meio do mundo, de segunda a segunda demonstrando vidas atrativas e possuidoras de sentido e razão?
John Stott uma certa vez disse que “não devemos perguntar: ‘O que há de errado com o mundo?’ Esse diagnóstico já foi dado. Em vez disso, devemos perguntar: ‘O que aconteceu com o sal e a luz?’”
Lourenço Stelio Rega é eticista e escritor, licenciado em Filosofia pela UNIFAI-SP, bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo, mestre em História da Educação e doutor em Ciências da Religião pela PUC-SP, especialista em Bioética. É missionário da SEPAL.