A infertilidade e a adoção de crianças

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A adoção de crianças não é uma atitude exclusiva para quem não pode gerar filhos biológicos. É um ato de graça, de doação de amor. Algo que tem tudo a ver com a fé cristã. Entretanto, ao longo do tempo, e em razão de minha experiência pessoal, concluí que aqueles que têm de lidar com a infertilidade precisam de uma palavra relativa a esse tema. Por conta disso, resolvi redigir este artigo. Afinal, embora a grande maioria dos casais, ao se depararem com a infertilidade, procure solucionar o problema através da medicina, nem todos logram êxito nessa empreitada. E, diante do insucesso, alguns acabam desistindo de ter filhos sem nem ao menos considerar a possibilidade da adoção. É provável que essa postura se baseie em mitos e preconceitos relacionados à origem da criança adotada. Um deles, provavelmente o mais disseminado, é a associação da “origem ou o ‘sangue dos pais’ a comportamentos de desobediência, mentiras, drogadição ou transtornos psiquiátricos”[1].

Em face dessa realidade, é fundamental desmistificar a adoção, demonstrando sua fundamentação bíblica e viabilidade. Vale ressaltar, no entanto, que não se pode impor algo dessa natureza. Basta apontar como um caminho possível e bíblico. O casal é quem precisa concluir que é mais prudente dar preferência à adoção, visto que a Bíblia a retrata positiva e explicitamente[2]. Até porque, como diz Andreas Köstenberger no livro Deus, casamento e família, “embora o uso de tecnologias de reprodução possa ser permissível em termos gerais, não se deve pressupor que toda forma de reprodução medicamente assistida é bíblica e moralmente aceitável”[3].

É importante salientar também que as Escrituras não contêm uma legislação relativa à adoção. Mas esse é, definitivamente, um assunto bíblico. Tanto que serve de base para a argumentação paulina sobre a filiação divina dos servos de Deus (Rm 8.15,23; 9.4; G14.5; Ef 1.5). De modo que, conforme o ensino neotestamentário, é através da adoção que “os cristãos são introduzidos no relacionamento filial entre Jesus, o Filho, e Deus, seu Pai, e participam juntos da nova família de Deus”[4]

Ademais, o próprio Jesus foi adotado por José, marido de Maria; o qual, posto que não fosse seu pai biológico, o tratou como seu filho. Uma evidência disso, é o fato de que ele ensinou sua profissão a Jesus. De forma que o Cristo foi reconhecido não somente como “o filho do carpinteiro” (Mt 13.55), mas como o próprio carpinteiro (Mc 6.3). Tendo em vista que “os ofícios eram em geral hereditários e as técnicas se transmitiam na oficina familiar”[5], fica patente que José o recebera como um filho genuíno. Além disso, tudo o mais que um pai faria por um filho ele fez por Jesus. Senão vejamos: “[…] participou da escolha de seu nome (Mt 1.25), apresentou-o no templo (Lc 2.22-24), protegeu-o do perigo ao levá-lo para o Egito (Mt 2.13-15)”[6] e, quando o perdeu de vista, procurou-o por três dias até encontrá-lo no meio dos doutores (Lc 2.41-52).

Outro ponto digno de nota é a inexistência de relatos bíblicos em que filhos adotados tenham se voltado contra os adotantes ou que tenham se tornado pessoas más por causa de sua herança genética. Pois, apesar de Moisés ter recusado “ser chamado filho da filha de Faraó” (Hb 11.24), não o fez por ingratidão ou por ser mau, mas sim porque sua adoção “bem como seu retorno à família biológica, faziam parte do plano divino de salvação, no qual Moisés conduziu seu povo, Israel, para fora da escravidão do Egito rumo à terra prometida”[7].

Há, por outro lado, episódios em que filhos biológicos agiram contra a própria família. Três dos filhos de Davi procederam dessa forma: Amnon estuprou a própria irmã (2Sm 13.1-15), Absalão voltou-se contra seu pai (2Sm 15), e Salomão mandou matar seu irmão (1Rs 2.24,25). É claro que eles não fizeram essas coisas por serem filhos biológicos, mas simplesmente porque eram pecadores. Essa verdade é suficiente para que o conselheiro possa refutar a pressuposição de que existe uma espécie de maldição genética que acompanha as crianças adotadas. Com efeito, todos os filhos, adotados ou biológicos, já nascem contaminados com a corrupção herdada do primeiro casal (Rm 5.12).

É preciso lembrar também que, apesar da herança que recebemos de Adão, Deus quis nos adotar. Isso porque, Ele decidiu nos amar, “sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8). E, por causa do seu amor, recebemos o privilégio “de sermos chamados filhos de Deus” (1Jo 3.1). Portanto, tomando por base o princípio bíblico de que devemos imitar nosso Criador (Ef 5.1), não deveria haver qualquer argumento contrário à adoção no seio da igreja. É bem verdade que a adoção divina foca nossa salvação e estabelece uma relação espiritual com Ele. Porém, como destacam Paul e Hilary Johnson, há claros paralelos entre essa adoção e o ato de adotar uma criança. Um deles é

o fato de que a adoção tem um custo pessoal (para o adotante e para o adotado); muitas vezes envolve resgate de situações muito tristes e difíceis; envolve a mudança do status jurídico do adotado; torna os adotados herdeiros da pessoa que adota; e muitas vezes ainda envolve algum sofrimento no presente com a promessa de uma glória mais plena por vir[8].

Contudo, ainda que adotar uma criança seja um caminho biblicamente viável, é preciso ter em mente que a adoção é uma experiência desafiadora. E como tal pode ser acompanhada de grandes embaraços. John Piper, em um podcast transcrito e publicado no site desiringGod, elencou alguns dos desafios que os adotantes podem enfrentar: “crianças que moraram em orfanatos ou que foram passadas entre parentes trazem problemas. Eles trazem coisas para a família das quais você não tem a menor ideia. Já vi casos de roubo compulsivo, mentira e fuga de casa”[9].  Não obstante, Piper sublinhou: “todo mundo precisa saber que, seja a criança adotada ou não, esse pode ser o seu destino. E quando você abraça uma criança, de uma forma ou de outra, Deus espera que você cumpra suas obrigações”[10].

Além do mais, gerar biologicamente não torna ninguém pai de verdade. Até porque, muitos geram crianças apenas para maltratá-las. O pai de verdade deve imitar o Pai Celestial (Mt 5.48) e amar independentemente das ações, procurando a cada dia fazer dos seus filhos seguidores de Jesus Cristo. E isso não depende de vínculo biológico, mas da instrução bíblica e da operação do Espírito Santo.

Isso posto, conquanto seja salutar que os casais interessados em adotar visitem orfanatos e procurem grupos de apoio aos adotantes, o mais importante é orar para que Deus lhes dê direção e a coragem necessária para abraçar esse desafio. De maneira que os caminhos que levarão até a adoção ensejem à glorificação daquele que os adotou em Cristo.

Pr. Cremilson Meirelles


[1] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MATO GROSSO. Manual para formação de
instrutores do curso preparatório para pretendentes à adoção.
 CORREGEDORIA-GERAL DA
JUSTIÇA, 2020, p. 30. Disponível em http://www.tjmt.jus.br/intranet.arq/downloads/Imprensa/NoticiaImprensa/file/18%20-%20MANUAL%20ADOCAO-TELA.pdf. Acesso em 28 de agosto de 2021.

[2] KÖSTENBERGER, Andreas J. Deus, casamento e família: reconstruindo o fundamento bíblico. Traduzido por Susana Klassen. São Paulo: Vida Nova, 2015.

[3] KÖSTENBERGER, 2015, p. 142.

[4] KÖSTENBERGER, 2015, p. 144.

[5] VAUX, Roland de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2004, p. 73.

[6] KÖSTENBERGER, 2015, p. 143.

[7] Idem.

[8] JOHNSON, Paul; JOHNSON, Hilary. Adoption – not just a calling for the childless. 2009 (tradução nossa). Disponível em: <https://www.cmf.org.uk/resources/publications/content/?context=article&id=25367>. Acesso em 28 de agosto de 2021.

[9] PIPER, John. One beautiful adoption story. 2014 (tradução nossa). Disponível em: <https://www.desiringgod.org/interviews/one-beautiful-adoption-story>. Acesso em 28 de agosto de 2021.

[10] Idem.

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