Desafios da prática pastoral na contemporaneidade – Parte 1 e 2

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As primeiras décadas do século XXI se descortinam sobre a Igreja de Cristo apontando para a consolidação de profundas mudanças sociais, políticas, econômicas, filosóficas e religiosas, que tiveram início desde a segunda metade do século passado. O mundo atual é pragmaticamente diferente de tudo aquilo que já se viu. Do ponto de vista ético, é quase amoral e narcisista; do ponto de vista político, pluralista; do ponto de vista filosófico, relativista; do ponto de vista econômico, consumista; e do ponto de vista religioso, místico e fetichista.

Sem dúvida, é neste último aspecto onde se concentram os maiores desafios para Igreja e para a prática pastoral. A religiosidade pós-moderna é marcada pela insegurança existencial e centrada na identidade individual. A busca pelas experiências religiosas individuais e a hipervalorização do pluralismo religioso não só revelam o narcisismo do indivíduo pós-moderno como também têm gerado um sentimento de revolta contra a religião institucionalizada.

Como resultado disso, as pessoas não buscam mais na religião as noções de verdade – “pois cada uma possui a sua” -, dizem, procuram experiências, as mais diversas e mais intensas, a fim de satisfazer seus apetites narcisistas. Querem uma religião funcional. Aliás, não é religião que querem, mas, como já dito, experiências místicas – não importando quem ou como se ofertam essas experiências.

Tragicamente, essa visão religiosa tem contaminado também a Igreja. Deus não é mais visto, de modo geral, como o Senhor do universo a quem se deve amar e servir ao longo de toda vida, é, pelo contrário, alguém que tem o dever de satisfazer necessidades e desejos do indivíduo; e se esse sujeito tem algum dever para com Deus, isso se deve ao fato de cumpri-lhe algumas exigências (dízimos, sacrifícios pessoais, esmolas) para que o abençoe. A lógica de mercado, constituída da troca de sacrifícios por bênçãos, determina o tipo de relacionamento que se estabelece com o sagrado. Ao contrário do pensamento bíblico de que existimos para amar e glorificar a Deus, se tem sugerido que Deus existe somente para nos amar e nos fazer felizes.

Não há dúvidas, vivemos num caos. Como ser pastor neste areópago pós-moderno? Que tipos de desafios enfrentamos em nossa prática pastoral ao ministrarmos a essa geração babélica? Neste artigo queremos considerar dois grandes desafios para a prática do ministério pastoral na sociedade contemporânea. Nesta primeira parte, abordaremos a necessidade que tem o pastor, como um profeta de Deus para sua geração, de compreender o contexto cultural no qual ministra, para então suplantar os desafios da semeadura do Evangelho nesse solo pós-moderno.

Da leitura da Bíblia para a leitura da Cultura

Primeiramente precisamos fazer uma leitura correta e adequada da cultura de nosso tempo. O pastor precisa entender o mundo ao qual ministra. Deve ter a percepção de que labuta em uma sociedade pós-moderna e pluralista e que os métodos que funcionaram bem em outra época podem estar fadados ao fracasso em nossos dias. Precisa saber lidar habilmente com esse espírito pluralista e religioso que está possuindo as almas das pessoas em nossa geração, não para expurgá-lo, porque essa casta não sai mais nem com oração e jejum, veio para ficar; o ministro cristão deve subjugá-lo a fim de conduzir as almas dos homens a Cristo.

Creio que Eugene Peterson tem razão ao argumentar que o pastor não deve crer que foi chamado para mudar o mundo, declarando guerra abertamente ao modo de pensar das pessoas, nem tão pouco para ser um capelão para nossa cultura, mas para subvertê-la de modo silente, implantando o Reino de Deus no coração das pessoas. Desse modo, “o verdadeiro trabalho do pastor é o que Ivan lllich chama de operação na ‘sombra’ – um trabalho […] que constrói um mundo de salvação, significado, valor e propósito, um mundo de amor, esperança e fé – em resumo, o reino de Deus”.

Como um experiente lavrador, o pastor deve saber a que tipo de solo lança sua preciosa semente. E, a partir desse conhecimento, esmerar-se por encontrar um lugar seguro para o Evangelho no coração das pessoas. Isso tem a ver com métodos e não com a mensagem. O evangelho de Cristo é imutável, mudam-se os tempos, mudam-se as pessoas, mas a oferta da salvação por intermédio da graça deve permanecer inalterável. A mensagem é resultado da leitura da Bíblia, a imutável palavra de Deus, mas os meios e os métodos como essa mensagem deve ser comunicada para alcançar emergem da correta leitura da cultura e do tempo.

Em síntese, se queremos cumprir nosso chamado celestial como bons despenseiros da multiforme graça de Deus no mundo, primeiramente precisamos aprender a ler nossa cultura à luz da Bíblia e não a Bíblia à luz da nossa cultura. Só assim preservaremos o Evangelho e derivaremos dessa leitura meios e métodos mais eficazes para alcançar o coração de nossa geração. 

Parte 2

Na primeira parte deste artigo abordamos o desafio que o pastor tem de fazer uma leitura correta e adequada da cultura de seu tempo. O desafio é não apenas entender as pessoas de nossa geração para lhe comunicar eficazmente o evangelho, como também ler essa cultura à luz da Bíblia, evitando assim sucumbir à tentação de ler as Escrituras à luz da nossa cultura, o que pode comprometer a integridade do evangelho.

Nesta segunda parte, queremos discutir uma questão básica e atualmente muito nevrálgica do ministério pastoral no caos da cultura pós-moderna – a preservação da identidade do pastor e a missão do ministério pastoral.

A identidade do pastor e a missão do ministério pastoral

O que é e o que faz um pastor? Qual é a missão de seu ministério no mundo? Eugene Peterson está certo ao dizer que, influenciados pela cultura de mercado que permeia a religiosidade contemporânea, muitos pastores se acham perdidos quanto àquilo que são e o que fazem. Atualmente, a identidade pastoral está profundamente ligada à imagem de um empresário religioso, um executivo da religião e, mais recentemente, a um coaching, um guru com receitas prontas e fáceis para tudo.

Muitos pastores se vêem como aqueles que têm a responsabilidade de “tocarem” a Igreja e fazerem-na prosperar. Pressionados por essa deturpação de sua identidade e pela infeliz comparação a outros pastores e ministérios, muitos “vendem a própria alma” para fazer “o negócio” dar certo. Sem nenhuma circunspecção inventam e consomem todo tipo de “métodos de crescimento de igreja”, e quando esses métodos não funcionam, deixam a igreja local sob o pretexto de que Deus os estar convocando a outro ministério.

A verdade é que a sedução do sucesso, a tirania do ministério voltado para “resultados”, o carreirismo religioso e a profissionalização do ministério são sintomas de que a identidade pastoral está em crise. E isso acontece porque temos permitido que a cultura contemporânea e não pela Bíblia defina o que somos e o que fazemos como pastores. Precisamos voltar a entender o ministério pastoral como uma vocação, um chamado divino, ou como diz Peterson, “uma missão de vida”.

Nós pastores somos guias de almas, não gerentes de Igreja ou capelães da cultura. Quando o pastor tem essa consciência, passa a perceber que lida primariamente com Deus, e só secundariamente com as coisas de Deus. A primeira consequência dessa consciência é a construção de uma espiritualidade adequada àqueles que têm uma vocação e missão no mundo. Uma espiritualidade baseada em um relacionamento profundo e real com Deus conduz o ministro a uma entrega à oração e à pregação da palavra.

A propósito, oração e pregação são duas atividades que definem muito bem o que faz um pastor. O ministro precisa ser um homem de oração. Precisa gastar muito de seu tempo na presença de Deus, aprendendo a ouvir a voz daquele que o arregimentou. É claro que a oração não se opõe ao trabalho. Pelo contrário, o pastor legitimamente ativo é aquele que primeiro se ocupa do cuidado de sua alma, é aquele que é ocupado demais para deixar de orar.

A pregação é outra atividade que define o que faz um pastor. O ministro precisa mergulhar na Palavra, deixando-se primeiramente tocar por ela, permitindo que o Espírito Santo ministre Sua graça ao coração. Não se trata de mero estudo formal, mas de reflexão e meditação profunda acerca das revelações sagradas. O problema é que a maioria de nós pastores, sufocados pelo ativismo eclesiástico, mal conseguem separar algumas horas para preparar sermões.

O pastor também deve cuidar do rebanho de Deus. A Bíblia define o pastor como aquele que cuida do rebanho de Deus . Essa é uma arte já quase esquecida na Igreja contemporânea. Temos esquecido que nosso trabalho como pastor consiste em apascentar as almas dos homens por quem Cristo morreu. Recebemos dEle, nosso supremo pastor, o dever de tratar dessas almas e delas prestarmos conta5 . Essa é uma responsabilidade tremenda. Porém, nisso também estamos de acordo com Eugene Peterson, o trabalho pastoral, não consiste em resolver os problemas das pessoas ou fazê-las mais feliz, mas ajudá-las a ver a graça e a presença de Deus em todos os momentos de suas vidas6 . Por essa razão, o pastor precisa estar presente na vida do povo ao qual ministra, escutar suas angústias, dores e decepções. Precisa ouvir o coração das ovelhas de Cristo e ministrar a graça e o amor de Deus a esses corações partidos.

Portanto, ser pastor numa cultura caótica como a nossa é, como já assinalado, uma tarefa árdua e plena de desafios. Ao mesmo tempo em que somos desafiados a não permitir que a cultura molde nossa identidade e nossa missão pastoral, também somos instigados a, a partir da leitura de nossa cultura, adaptarmos nossos métodos a fim de alcançarmos o coração das pessoas que, de outra maneira, jamais seria alcançado. Só assim, cumprimos os propósitos de Deus para nosso ministério pastoral.

Domingos de Sousa Machado –  pastor da Igreja Batista no Bela Vista (Teresina-PI) há 20 anos. Doutor em Ministério pelo Seminário Teológico Batista Servo de Cristo (STSC-SP) e Doutor em Linguística/Semiótica pela Universidade Federal do Ceará. Professor adjunto de Linguística da Universidade Estadual do Piauí-UESPI e de grego bíblico no Seminário Batista de Teresina.



Referências

PETERSON, Eugene H. O pastor Contemplativo. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 45

Efésios 2:8

PETERSON, Eugene H. A vocação Espiritual do Pastor. São Paulo: Mundo Cristão, 2010.p.72.

“E, quanto a nós, nos consagraremos à oração e ao ministério da palavra” (Atos 6:4).

“Pastoreai o rebanho de Deus que há entre vós”. (1 Pedro 5:2).

Hebreus 13:17

 PETERSON, Eugene H. O pastor Contemplativo. São Paulo: Mundo Cristão, 2008

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