Uma reforma a partir de uma rede de leitores

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Foto: Reprodução/Internet.

Nesse momento de pandemia e de polarização ideológica-política, pessoas acabam por se interessar cada vez mais por ler, curtir e repassar conteúdos que circulam livremente pela web que tem a enorme capacidade de gerar engajamento, mas que essencialmente não aprofundam nenhum assunto.

Números do começo de 2021 levantados pelo DIGITAL 2021: GLOBAL OVERVIEW REPORT[1] indicam que os brasileiros passam, em média, 3 horas e 42 minutos por dia conectados às redes sociais. Esse mesmo relatório mostra alguns números impressionantes de usuários das redes sociais no Brasil em 2021 e destaco aqui algumas das principais: Facebook (130 milhões), YouTube (127 milhões), WhatsApp (120 milhões) e Instagram (110 milhões). Além disso, uma pesquisa da Comscore[2] sobre o uso dessas mesmas redes sociais no Brasil em 2020, mostram que a penetração de conteúdos entre os usuários únicos de redes sociais no Brasil atinge um alcance de 97%, o índice mais alto do mundo, ultrapassando países como China, Índia e Estados Unidos.

Essa pode ser uma das razões pela qual as famosas “frases” ou “pensamentos” circulam de forma abundante pela grande rede e pelas mídias digitais. Frases de escritores como C. S. Lewis, Billy Graham, John Piper, John Stott, os Pais da Igreja e outros de similar relevância, incluindo os brasileiros, estão nesse rol de celebridades disseminadas pelas frases retiradas de obras, em geral importantes, mas que ajudam a estabelecer o exercício do livre pensamento e conhecimento, que é promovido nesse ambiente digital.

Esse padrão de reflexão limitada sobre profundos temas da complexa da nossa existência e mesmo da fé cristã, pode iludir seus emissores e receptores sobre uma possível compreensão da teia da vida e das crises mais profundas que intrigam a humanidade faz tempo. Assim, muitos que recebem e repassam esses “conteúdos condensados” provocam sensações e reações nem sempre favoráveis, já que até mesmo selecionar e passar adiante uma frase de determinado autor, identifica a tribo de quem cria, envia e até curte. Já os livros desses mesmos autores, e de outros igualmente importantes, tem a prerrogativa e possibilidade de provocar no leitor o aprofundamento de determinados temas e vivências, pensados e refletidos, e muitas vezes debatidos, ao longo de anos e até de décadas. Afinal, escrever um bom livro é um trabalho que exige muito do autor. E não são poucos os livros que se tornam clássicos por sua envergadura e robustez de conteúdo que perpassam gerações, culturas e sociedades como um todo.

Vale destacar que existe toda uma tradição oral que é transmitida entre os variados grupos protestantes. Com isso, não podemos de forma alguma afirmar que só experimenta a fé com mais robustez e profundidade, quem de alguma forma é letrado ou leitor de livros. Mas a verdade é que infelizmente ainda são poucos os que usufruem desse privilégio da leitura no meio religioso protestante brasileiro. E é a partir do que se crê que se pratica a fé.

No entanto, ler é uma parte importante na vivência religiosa e na construção do pensamento protestante brasileiro. Isso porque, em geral, a religião tem profunda conexão com a literatura na busca por conhecimento, consolidação e aprofundamento da crença e dos sistemas de fé. Não é sem motivo que as duas principais religiões em termos numéricos do planeta têm seus livros “sagrados”: Cristianismo e Islamismo. Mesmo os sem-religião se utilizam de literatura para os ajudar a sustentar suas crenças não-religiosas, racionais e seculares.

Uma pesquisa[3] apresentada pelo Instituto Pró-Livro em setembro de 2020, o Brasil perdeu 4,6 milhões de leitores em quatro anos (2015-2019). Além disso, de acordo com a matéria da Agência Brasil, a pesquisa mostra que “o brasileiro lê, em média, cinco livros por ano, sendo aproximadamente 2,4 livros lidos apenas em parte e, 2,5, inteiros. A Bíblia é apontada como o tipo de livro mais lido pelos entrevistados e também como o mais marcante”[4]. É verdade que a Bíblia já há muito supera em venda e em leitura as demais obras literárias tão celebradas pela intelligentsia nacional, que trata com descaso a imensa atividade editorial desse segmento religioso. Infelizmente, isso não quer dizer que todos os que compram bíblias as leem, da mesma forma que a compra de livros não significa leitura da obra, de qualquer que seja a área. Ingênuo ou desconhecedor é quem acredita que não existe consumismo na literatura, inclusive a religiosa.

Ainda de acordo com a Agência Brasil, esse mesmo estudo “mostra que 82% dos leitores gostariam de ter lido mais. Quase a metade (47%) diz que não o fez por falta de tempo. Entre os não leitores, 34% alegaram falta de tempo”. Ora, observando os impressionantes números das pesquisas apresentadas no início desse artigo, vemos que o brasileiro passa em média quase quatro horas por dia engajado nas redes sociais. Com isso, a argumentação da “falta de tempo” apresentada na pesquisa mostra que na verdade o que falta ao brasileiro é foco e prioridade no exercício da leitura de livros. E isso só irá acontecer quando entendermos o valor da leitura e os enormes benefícios que ela pode trazer. De fato, é um hábito que precisa ser cultivado em prol do crescimento e desenvolvimento da própria pessoa.

No momento em que se aproxima mais um aniversário da Reforma Protestante, é importante ter em mente que esse longo e difícil trajeto teria sido muito mais difícil sem o apoio da literatura ao logo dos últimos cinco séculos. Assim, ser protestante, ou evangélico (termo usado genericamente em nosso país), é estar sempre aberto a aprofundar o pensamento e conhecimento a partir de leituras de bons livros. Por isso, em tempos de redes sociais, se desconecte por um tempo e se desafie a mudar de hábito e a investir seu tempo em boas leituras. Afinal, nos melhores livros você encontrará ótimas frases e pensamentos para ajudar sua reflexão sobre a sua crença e sua experiência de fé. Certamente você terá escolhido suas próprias “frases” e “pensamentos” para postar em suas redes sociais. Assim, podemos iniciar uma reforma a partir de uma rede de leitores.

Marcos Simas – É doutor em ciências da religião. Por mais de trinta anos tem atuado como editor responsável em mais de 600 projetos editoriais e foi o editor-chefe da revista Christianity Today em língua portuguesa.

[1] https://datareportal.com/reports/digital-2021-global-overview-report

[2] https://www.comscore.com/por/Insights/Apresentacoes-e-documentos/2021/O-estado-das-redes-sociais-no-Brasil

[3] https://www.prolivro.org.br/wp-content/uploads/2020/12/5a_edicao_Retratos_da_Leitura-_IPL_dez2020-compactado.pdf

[4] https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2020-09/brasil-perde-46-milhoes-de-leitores-em-quatro-anos

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