Onde está sua Fé? Nas pessoas ou no Deus das pessoas?

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Escândalos e polêmicas envolvendo líderes e celebridades do meio evangélico que arrastam multidões têm sido uma das maiores causas de decepção e esfriamento da fé. Figuras públicas são consideradas seres quase perfeitos, e não são raros os casos de confusões relacionadas a carreiras de fenômenos gospel que se transformaram em “semideuses”.

Quando isso acontece, começa o culto à personalidade, e um comportamento idólatra se instala no coração e na mente daquele quem foca a atenção nas pessoas, e não no Senhor das pessoas; e a obra fica menor do que o obreiro; a cruz é substituída pelos holofotes dos palcos; a adoração a Deus perde para a celebração de famosos.

A veracidade de acusações levantadas contra a moral de líderes religiosos e políticos pode ser questionada, e é pouco importante se tais críticas são verdadeiras ou falsas. O estrago já foi feito; o resultado inevitável: o afastamento de Deus, o fim da ministério, o roubo da adoração e a morte da fé. Mas, afinal, o que é fé? Textualmente a Bíblia diz que é a certeza das coisas que se esperam e a convicção de fatos que não se veem (Hebreus. 11.1).

Todos os povos, de todos os tempos, culturas e religiões, desenvolveram sua própria crença baseados em suas experiências e escolhas. Historicamente, o que difere as convicções entre uma e outra corrente é o seu objeto, o alvo a que ela se destina. A escolha do lugar ou da pessoa em que a fé será depositada tem feito com que essa palavra tão pequena seja responsável por grandes realizações no mundo inteiro, mas também por muitas distorções que provocam decepção, frustração, escândalos e principalmente idolatria. Ao refletirmos sobre onde estamos colocando a nossa fé, podemos esbarrar em amuletos populares ou naqueles que foram criados dentro da igreja.

O pastor e compositor Gerson Borges explica que, em virtude da “fome natural de devoção, se o indivíduo não adorar ao Deus Criador do universo, pode ser levado a acreditar e a cultuar qualquer coisa, inclusive o próprio homem ou sistemas humanos.

Esses amuletos podem ser um objeto, um sistema religioso, um líder, um pastor, um artista, um símbolo ou a própria fé na fé”, afirma. Tudo isso pode nascer dentro da igreja, tornando-a refém de uma postura idólatra e bem diferente do que nos ensinam as Escrituras.

Gerson lembra as palavras do pastor norte-americano, apologista cristão, Tim Keller: “O coração humano é uma fábrica de ídolos”. “Temos uma conhecidíssima tendência à idolatria. Isso é encontrado em qualquer religião. São o fetiche, o rito e o ritual que supostamente manipulam o sagrado”, disse Borges.

Cantor e produtor musical, Leonardo Gonçalves acrescenta que há um exagero no foco da metodologia. “É como se atribuíssemos às orlas das vestes de Cristo a cura da mulher do fluxo de sangue”. É como se Bartimeu e outro cego se encontrassem e discutissem por que Jesus curou um apenas com palavras, e o outro, com mistura de saliva e terra”, compara.

A exemplo do que aconteceu com a serpente levantada por Moisés no deserto, muitas vezes um instrumento criado por Deus para sinalizar a fonte real de cura e salvação acaba por tornar-se om objeto de fé, devoção e adoração. Presbítero da Comunidade Cristã Reformada, Ariovaldo Ramos ressalta que o povo tinha a perspectiva pagã; acabou por conferir poder à estátua e, por conseguinte, adoração”, disse.

Na visão de Leonardo Gonçalves, nossa tendência é de coisificar sempre. “Vi um grande líder religioso comprando a briga de que nós não podemos trocar a Bíblia por apetrechos eletrônicos, desestimulando os jovens a lê-la no celular ou no tablet, como se a Palavra de Deus fossem as páginas do livro.  E tem os que valorizam as páginas do livro mais do que o conteúdo do que ali está escrito. E mais fácil conferir também se o livro está sendo bem cuidado do que se o conteúdo está sendo bem interpretado e aplicado”, pontuou.

Neste contexto bíblico, quem era picado pela cobra e olhasse com fé para a serpente construída por Moisés, por ordem de Deus, era curado, numa analogia à cruz de Cristo, levantado para nossa cura e salvação. Entretanto, a própria cruz se tornou um amuleto para quem desviou seu olhar do Cristo da cruz, para a cruz do Cristo, autor e consumador da nossa fé. Nesta perspectiva, Ariovaldo adverte: tudo que confunde Cristo com qualquer projeção idólatra, ou acrescenta algo ao seu sacrifício, é idolatria.

Se a oferta de amuletos e de opções parabíblicas já traz confusão para uma fé saudável, a situação piora quando entra em cena uma liderança religiosa persuasiva e necessitada de ganhar visibilidade pessoal, fazendo com que a obra fique menor do que o obreiro. Léo Gonçalves afirma que na tradição judaica a bênção sacerdotal sempre é proferida de pés descalços e cabeça coberta. “Isso é para que tanto a congregação como quem também está proferindo a bênção lembrem-se de que Deus, e não o homem, é quem abençoa. É Deus quem cura, e não a toalhinha ungida (independentemente de ela ser vendida ou dada gratuitamente). O milagre e a presença de Deus acontecem quando Ele quer, e não quando a celebridade religiosa se faz presente. Deus age por meio de nós, não porque somos fiéis ou dedicados, dizimistas ou conhecedores da Palavra, mas por Sua misericórdia”, salienta.

Pastor, compositor e músico, Nelson Bomilcar adverte para o perigo da associação das bênçãos do Senhor necessariamente com proveitos materiais e sucesso profissional. “Quando isso não acontece, as pessoas adoecem, decepcionam-se, entram em crises de fé, por terem achado que foram enganadas por pastores com postura duvidosa, que dizem que Deus está a serviço deles. E ainda geram líderes manipulativos usurpadores que enriquecem com a fé dos símplices.”

Quem endossa essa afirmativa e acrescenta uma observação é o compositor e cantor João Alexandre. “Há uma linha tênue que separa a fé da idolatria. Em nome da fé se acredita em qualquer coisa, e as pessoas buscam seus próprios interesses. Se existem os caras que estão fazendo sucesso hoje, é porque existem os caras que fazem e acreditam que eles estão acima dos demais, que dão cobertura espiritual, e acreditam que, se ele está falando, é porque é ungido e, se é ungido, então ele tem razão. Minha mãe tinha medo de tocar no ungido. Hoje sei que não existe isso, todos estão debaixo da unção de Deus, e o ungido é Jesus”, conclui.

Mesmo admitindo que sempre há o perigo de pessoas muito talentosas ou persuasivas usarem o que receberam de Deus em benefício próprio, Léo Gonçalves lembra que os dons são dados pelo Pai. “Desde Gênesis 12, todas as bênçãos são dadas não para a pessoa que as recebe, mas para as pessoas que através dela serão abençoadas. “Abençoarei quem te abençoar, sê tu uma bênção, diz o Senhor ao ainda Abrão” (Gênesis 12.).

A fé torna-se idolatria quando seu fim é colocado em si mesma. É o que diz o Gerson Borges. “E o maior ídolo que o homem tem adorado é o próprio homem. Parto do pressuposto de que queremos ser Deus em vez de adorar a Deus”. Para Bomilcar, isso só reflete e mostra o corrupto e enganoso potencial do coração do homem. Na opinião de Ariovaldo, “a fé cristã é um milagre, mas o cristianismo é uma religião como qualquer outra. Toda religião é idólatra”, alerta.Mas como seria possível a fé tornar-se idólatra? Ariovaldo Ramos assegura que, se ela é genuína, não há risco de isso acontecer, pois estamos falando de dom de Deus. Nelson Bomilcar explica que historicamente isso fica evidenciado em Deuteronômio 6:1-15. “Cada religião produz seus ídolos e idólatras, que geram segmentos fundamentalistas irracionais. O homem tem coração e natureza inclinados a construir falsos deuses. E isso traz grandes prejuízos, inclusive à fé cristã. Na realidade contemporânea, isso é presente com culto a pessoas, pregadores, líderes religiosos e artistas, reportados e encontrados na mídia”, diz Bomilcar.

Neste contexto, Léo Gonçalves levanta uma questão: “Considero completamente normal o ser humano buscar referências mais palpáveis, mais próximas, inclusive no meio religioso/ cristão. Tanto assim que se criou o chavão, na década de 90, que talvez nós sejamos o único Cristo que as pessoas conhecerão, no sentido de buscarmos ser iguais a Ele, refletindo Sua imagem e Seu caráter. Se levarmos ainda em consideração que em 1995 havia aproximadamente 50 mil de evangélicos, fica fácil perceber que pelo menos 80% dos evangélicos de hoje não têm mais de 20 anos de Evangelho, ou seja, são relativamente novos na fé e talvez por isso necessitem ainda mais de referências humanas. O próprio apóstolo Paulo afirmou em I Coríntios. 11:1: ‘Sede meus imitadores, como também eu de Cristo’.”

A prática dessa orientação bíblica evitaria contendas e disputas. “Quem é Apolo? E quem é Paulo? Servos por meio de quem crestes, e isto conforme o Senhor concedeu a cada um” (I Coríntios 3.5). A responsabilidade de quem ensina é grande porque estes devem apontar para o verdadeiro objeto de nossa fé cristã. “Porque ninguém pode pôr outro fundamento, além do que foi posto, o qual é Jesus Cristo” (I Coríntios. 3.11).

Estímulos para a fé e diversão no culto

Paralelamente a todo esse raciocínio de desvio da fé e de idolatria, em que o povo perde o eixo, e não olha para as Escrituras, existe um fato científico. A fé é estimulada pelos sentidos, que, por sua vez, são provocados por sons, visões, cheiros e toques. Esses sentidos são aflorados pelos ícones criados desde a tradição mais ortodoxa. Se pensarmos nos ícones do computador, veremos que basta clicar em um deles para entrar no seu mundo. Os ícones apontam a direção, mas erramos quando, em vez de irmos na direção em que ele aponta, ficamos no ícone. A cruz sinaliza para Jesus, e por trás dela há um significado do Deus que buscamos; não é a cruz o alvo em si mesma, o objeto de fé e adoração.

Bem diferente é o caso do bezerro de ouro, que aponta para o objeto errado. Gerson diz que, na linguagem de Êxodo 32, poderia chamar esse desvio de fé e adoração de “dança ao redor do bezerro de ouro”. “Arão, o arquétipo do sacerdote-animador de auditório, deu para o povo o que o povo queria”. Esse episódio remete também às questões do símbolo e do lúdico. “A religião e a espiritualidade não estão necessariamente comprometidas com a diversão e o entretenimento, mas a celebração traz consigo experiências lúdicas, como encontrar as pessoas, conversar, rir. O problema está na redução da experiência religiosa à mera diversão”, afirma.

Tomás de Aquino resumiu o significado simbólico da teologia e da espiritualidade cristã, ao dizer que Deus é maior do que as explicações que fazemos dEle. Imagens poderosas como peregrinação, deserto, ressurreição e tantas outras estão presentes na narrativa ou na poesia das Escrituras Sagradas. “É uma pena que o protestantismo evangélico dê cada vez menos importância para o simbólico e se esbalde com o lúdico”, conclui Gerson. Teria a Igreja perdido a noção da arte, por causa do medo do culto às personalidades? João Alexandre diz que ela “já não vê com olhos de artes, mas como símbolos que tomam o lugar de Deus”. “Antigamente, as igrejas eram símbolos de arte. Perdeu-se a visão do lúdico porque as pessoas têm medo de perder a fé e dar lugar a símbolos, mas eles existem também para lembrar da história da Igreja”, comenta.

Nelson Bomilcar lembra que adoração não é música nem apreciação da arte, mas um estilo de vida, para Paulo (1 Coríntios 10:31). “Nada a ver com essa pseudoadoração de pessoas, manifestações artísticas e eventos de entretenimento mercadológico. Podemos legitimamente apreciar a arte ou pessoas, sem adorar ou venerar.” Ele complementa que a fé envolve raciocínio, fatos, afetos e imaginação. “Nem sempre com a palavra escrita ou algo mais concreto. Nem sempre elas são claras, equilibradas na mente e coração dos homens. Então a literatura religiosa está repleta de percepções lúdicas e de simbologias, abrindo um leque de possibilidades de acertos e erros, e da instalação da idolatria e de distorções”, avisa.

Para Ariovaldo, essa ênfase nas dimensões do lúdico e do simbólico nada tem a ver com a fé. “Isso é para a conquista dos carentes. Não afeta a fé; simplesmente não produz a fé.” Nas redes sociais muitos são atraídos por personagens de grande influência, em quem projetam sua atenção, fé e consequente adoração às figuras públicas da internet, contrariando o que diz Isaías 42:8: “Eu sou o Senhor. Este é o meu nome; a minha glória pois, não darei a outro”.

Os maiores exemplos de fidelidade colocada no lugar certo podem ser encontrados no livro de Hebreus 11, que narra os patriarcas que morreram na fé, sem ter obtido as promessas, vendo-as de longe (v.13). E todos estes deram bom testemunho por sua fé, embora não tenham alcançadoa concretização da promessa (v.39). Fé colocada na pessoa certa que é Jesus Cristo não garante bênçãos e conquistas pessoais, mas assegura a Sua presença todos os dias, até a consumação dos séculos (Mateus 28:20). Esse é o maior fruto da fé de quem a depositou no lugar certo.

Um exemplo a ser seguido

Exemplos de pessoas que dispensaram a chance de serem vistas como ídolos, recusando-se a receber honras acima do que mereciam, existem em todos os lugares, inclusive no mundo secular. O famoso ator Harrison Ford, no filme “Indiana Jones”, despertou grande admiração e ganhou visibilidade. Numa entrevista a uma repórter que pergunta qual a sensação de ter o rosto mostrado no mundo inteiro, ele responde:

“Claro que é uma alegria saber que meu rosto foi visto por tantas pessoas, mas, antes de virem meu rosto, o figurinista fez a roupa e o chapéu que eu usava no filme. Antes do figurinista, teve alguém que fez o roteiro do caminho que tinha que seguir na hora de fazer a cena do filme, para eu não fazer nada errado. Antes disso ainda, alguém fez toda a iluminação pra iluminar meu rosto; teve aquela trilha sonora que criou aquele sentimento para eu poder correr naquela hora. Antes disso tudo, teve o diretor do filme, que foi o primeiro que me viu e avaliou pra ver se aquilo estava sendo convincente ou não. E tem o homem que escreveu a história daquele filme. O meu rosto aparece, mas tem o câmera que estava me filmando. Então, o meu rosto aparece, o deles não, então eu não sou mais importante, eu sou só parte do projeto, que é muito mais extenso. Se meu rosto aparece no mundo inteiro, é por conta de todos esses que trabalharam comigo, eu não estou sozinho. Se alguém merece honra e reconhecimento, são essas pessoas.”

Outro exemplo é de Johann Sebastian Bach, que começava suas partituras com J.J, abreviatura para “Ajuda-me Jesus!” e as finalizava com a expressão que se tornou conhecida na Reforma: “Soli Deo Gloria” (“A Deus somente a Glória”).

Além da figura principal de Jesus Cristo, outros personagens da história tiveram comportamento humilde diante dos “holofotes”. Mesmo que alguns deles tenham recebido honras simbolicamente, não se apropriaram destas ou não se envaideceram.

Figuras como essas provam que é possível tornar-se referência para multidões ou mesmo fazer história para muitas gerações sem, no entanto, prevalecer-se do destaque que ganhou. O desvio de orientação de fé e o prazer em ser idolatrado não fazem parte da vida de quem se relaciona com o fundador e consumador de tudo o que cremos.

Por Lília Barros

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